"CARO CARNAVALESCO , caro turista que vai desfilar neste Carnaval, eu gostaria de lhe fazer um pedido. Durante o desfile de sua escola de samba nos próximos dias, por favor, erre. Erre de propósito. Cometa bobagens imprevistas, saia do ritmo, embole a coreografia de seu grupo. Faça de tudo para que sua escola de samba ganhe notas péssimas dos jurados. É um pedido estranho, mas que não tem o objetivo de sabotar a festa. Pelo contrário. Para que a diversão volte a acontecer, para que ela seja de fato um Carnaval, é preciso urgentemente errar mais na avenida. O pedido se baseia na história. Por séculos e séculos, o Carnaval significou inversão de papéis, de julgamentos e de atitudes. Em outras palavras, significou fazer tudo ao contrário. Nas festas pagãs da Roma Antiga, que deram origem ao Carnaval cristão, escravos e seus senhores trocavam de posição: por um dia, eram os servos que mandavam. Já os europeus medievais faziam missas e procissões cômicas, desafiando a Igreja Católica, autoridade temerosa e indiscutível daquela época.
Uma festa parecida acontecia no Brasil. Durante as festas conhecidas como entrudos, as pessoas atiravam bolas de cera nos outros e faziam guerrinhas d'água pela rua, impressionando quem não estava habituado. Em 1832, o jovem Charles Darwin, ao visitar o Carnaval de Salvador com dois tenentes da Marinha britânica, escreveu assustado: "Achamos muito difícil manter a nossa dignidade enquanto caminhávamos pelas ruas". Essa algazarra deliciosamente sem noção foi silenciada na década de 30. Por influência de costumes e governos fascistas, a festa se aproximou de um desfile patriótico, com regras, jurados e horários marcados. Os foliões passaram a desfilar diante de autoridades do governo e de jurados, que avaliavam a disciplina, o figurino e a média de acertos dos grupos, dando notas até dez. Instituiu-se a obrigatoriedade de sambas com letras em prol da nação. Os instrumentos de sopro, que não remetiam à "cultura nacional", foram proibidos. As primeiras apresentações do Rio de Janeiro aconteceram na avenida Rio Branco, o mesmo local dos desfiles militares do dia 7 de setembro. A Deixa Falar, escola de samba mais antiga, desfilou em 1929 usando na comissão de frente cavalos da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Três anos depois, o samba-enredo da escola era A Primavera e a Revolução de Outubro, em homenagem à tomada de poder de Getúlio Vargas em outubro de 1930. A apresentação contou com participantes vestidos de militares. Os sambas das escolas também foram atração nas primeiras edições da "Hora do Brasil", programa criado pelo governo Vargas. Em 29 de janeiro de 1936, uma edição especial com a Estação Primeira de Mangueira foi transmitida para a rádio nacional da Alemanha nazista.
Criou-se nessa época o evento metódico que existe até hoje, com notas, vencedores, regras de conduta e, o que é mais incrível, uma trajetória retilínea. É injusto que o Carnaval brasileiro seja simbolizado por um desfile tão contrário ao espírito carnavalesco. Por isso, precisamos afastar o Carnaval brasileiro de seus tempos fascistas. Você pode fazer isso tomando atitudes simples durante o desfile. Basta praticar qualquer ação que irrite os dirigentes das escolas preocupados não com a sua diversão, mas com pontuações e patrocínios. Há diversas opções interessantes. Uma delas: pare diante dos jurados, dê de ombros a eles, chame-os para invadir a avenida (se eles não estiverem dormindo). Ou então, em vez de cantar sambas politicamente corretos patrocinados por Hugo Chávez ou por mineradoras, deite no meio do desfile e finja-se de morto. Empurre o carro alegórico para o lado contrário. E, por favor, livre-se daquelas penugens horríveis: já foi o tempo em que os brasileiros tinham que oferecer macumba para turistas, fingir-se de exóticos bem comportados para ganhar pontos ou atrair atenção. Já podemos deixar a Sapucaí de lado e dar mais atenção aos blocos de rua, onde algum Carnaval sobrevive. Repleta desse comportamento irresponsável, sua escola de samba se tornaria muito mais fiel ao Carnaval. Durante todo o ano corremos para seguir ordens, ritmos e horários, lutamos para ser aprovados, atingir o grupo especial ou tirar dez. O Carnaval é um pequeno momento do ano destinado ao oposto. Nesses quatro dias, você está liberado para errar, para não ser aceito e se esforçar em tirar zero. Por favor, aproveite. Bons carnavalescos, em vez de torcer por graves notas dez na quarta-feira de cinzas, festejam o rebaixamento. E, se os dirigentes das escolas reclamarem de seus erros, não se importe. Eles não sabem o que é Carnaval.
LEANDRO NARLOCH, 31, é jornalista. Foi repórter do "Jornal da Tarde" e da revista "Veja" e editor das revistas "Aventuras na História" e "Superinteressante". É autor do livro "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" (LeYa)."
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