domingo, 28 de dezembro de 2014

Um gesto pode mudar o mundo (Vittorio Medioli)

(Publicado no jornal  O TEMPO, EM 28/12/14)


"Devido ao engarrafamento, desviamos por um bairro de Contagem. Uma mulher de 50 anos, com seus 20 kg a mais, rodopia o braço e arremessa o saco de lixo, além do arame farpado, num lote vazio.

Sem pudor algum. Sem ao menos deixar nosso carro passar. Atitude que já tomou infinitas vezes. O local onde o embrulho aterrissa já é coberto de entulhos e imundices depositados ali por livre escolha de seres que ainda não fazem jus ao atributo de humanos.

No bairro existe coleta municipal de lixo, não se explica, assim, a escolha de despejar a esmo o que poderia ser levado sem custo para o aterro sanitário.

O gesto da mulher se volta como bumerangue sobre ela. Ela já perdeu seus encantos exteriores apesar de ser mais moça que Sharon Stone. Ela é o retrato traçado por Schopenhauer da fêmea que perdeu os atributos da atração.

Como explica o cabalista Eliphas Levi, “a beleza exterior da mulher é um reflexo de sua virtude interior”. Bem por isso as megeras ficam precocemente enrugadas, lábios finos, impróprios para beijar. Já as cinderelas são angelicais. Umas preparam venenos e jogam sacos de lixos, outras sabem cultivar flores.

A atitude antissocial é bastante comum, já que canteiros e espaços baldios em nossa Minas Gerais são devastados pelo lixo. Disso se explica a relação sutil com biótipos deformados.

Nada a ver com Katrina Kaif, do filme indiano “Te Amarei até Morrer” (passará no Cinemax, canal 678, no dia 31, às 10h35).

Além de contaminar o meio ambiente, desperdiçam-se materiais recicláveis e geram-se focos de dengue e doenças. O aviltamento visual provoca mais perda de autoestima dos moradores, já que o ambiente, de certa forma, não merece respeito: “Eu, que moro neste local, também não mereço respeito”. Já uma personalidade holística vai além de seu bairro e de sua cidade e pensa: “O que posso fazer para criar um mundo melhor...?”

O indivíduo é castigado pela degradação do ambiente, passa a conviver com a decomposição, baratas, ratos e insetos peçonhentos.

Voltamos a quem arremessou o saco de lixo, uma personalidade obtusa. Ela nasce da falta de regras de convivência civilizada, que a faz pensar que se livrou do lixo, sem entender que mais incômodos voltarão a ela. Planta ainda em seus filhos a semente da negatividade, ensina a desrespeitar e a subtrair dos outros uma vida melhor.

Escrevo um dia após o Natal, aguardando o surgimento de um Ano-Novo. De um mundo, ultimamente aviltado pela semeadura de males, que possa ser melhor. E alguém jogaria a pergunta: “Você se arrepende de quê?” Do que fiz, voltaria a fazer quase tudo, mas procuraria plantar mais árvores perfumadas, como o neem indiano, ou a doce graviola no meu pomar.

Confesso que, quando olho para uma árvore que plantei, sinto satisfação, “fui eu”. Árvore é uma filha. Passando, olho as minhas árvores e me deixo olhar, ficando em paz.

Algumas segurei com os dedos, minúsculas sementes, outras vi como mudas. Todas inteligentes. Basta reparar que crescem mais e melhor nos locais em que as pessoas as apreciam. Devolvem o agradecimento com a seiva, as flores, os frutos e a sombra.

O jacarandá que plantei no jardim custou a vingar. Ficou enorme. A nossa relação começou num hotel há 15 anos, e hoje ameaça com suas raízes arrebentar o corredor de casa.

A relação começou numa tarde ensolarada de março de 1999, na piscina do hotel Taj Mahal, da cadeia de Donald Trump, em Katmandu, no Nepal. As sementes caíam, entre elas escolhi dez. Embrulhei em papel laminado, tirado de um abandonado estojo de cigarros. Trouxe na mala até aqui. Dessas escolhi cinco, que plantei num canteiro de areia à frente do meu escritório. Todas brotaram. Quatro plantei em lugares inconvenientes, e acabaram sendo arrancadas. As demais cinco sementes eu perdi.

Esse jacarandá entrou na minha vida e decidi agora tirar 200 sementes, que pretendo germinar e plantar às margens da via de acesso de uma fazenda, deixando ali uma longa alameda. Sonho assim, numa próxima primavera, passar sob a sombra e me encher de alegria. Imagino ainda as pessoas se encantando com a chuva de flores violeta, agradecendo a quem as plantou. A imaginação faz voar. Suas sementes espalhando-se e dando árvores gigantescas em toda a América. Florestas de jacarandás. E, se isso vier a se realizar, foi por ter me levantado da cadeira, recolhendo em Katmandu aquela minúscula semente.

Existe em nós o potencial da felicidade e do castigo. Livres no arbítrio. E, se quiser um Ano-Novo melhor, como desejo a todos, “aproveite para plantar árvores, em qualquer lugar, elas e o mundo nunca esquecerão o gesto de quem as plantou”.

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