terça-feira, 16 de junho de 2009

Sobre o mal e outros comentários

A questão do Mal é discutida no Livro de Job. Sua existência não pode ser explicada, a não ser pela dimensão incompreensível dos desígnios divinos. De nada adianta ao homem o ter-se justificado pela fé em Deus e/ou pelas suas obras. Tudo Nele está mais além das medidas humanas. Deus não seria Justo nem Misericordioso: estes são atributos humanos. Aceitar a justificativa dada pelos teólogos sobre a identificação do Mal pela ausência do Bem é falso para qualquer um dotado de alguma sensibilidade. Uma dor física qualquer é tão vívida quanto qualquer prazer. A infelicidade não é a ausência de felicidade; ela é algo positivo. Quando estamos tristes sentimos isso como uma infelicidade. Uma visita a um asilo destinado a crianças com paralisia cerebral (Cf. o “Caminhos para Jesus”), é um libelo contra os teólogos que assim pensam. Como justificar um mundo tão cheio de erros; tão cheio de horror; tão cheio de pecados; com tanta dor física; tanto sentimento de culpa e tão cheio de crimes? O sofrimento (o zen), dizem os budistas, produz a vida, que é fundamentalmente desdita. Viver é nascer, envelhecer, adoecer, morrer e, além de outros males, um que é patético: não estar com quem queremos! Chegar ao Nirvana – onde nossos atos já não projetam sombras – significa estar livre do carma, aquela fina estrutura mental que transmigra. O Nirvana não é o Paraíso: é extinção, apagamento! Algo similar a Santo Agostinho, ao dizer que quando estamos salvos não temos por que pensar no mal o no bem. Seguiremos praticando o bem, sem pensar nisto! Mas o Buda insiste: o mundo é um sonho! Ou como está grafado num verso de Calderón de la Barca: “Viver é sonhar”. Não podemos renunciar ao mundo (como suicidar-se, ato apaixonado para Buda). Continuamos a sonhar o mundo, criar o mundo (onde os sonhos podem se transformar em pesadelos). Num eterno processo “sustentável” de volições aleatórias, onde a resultante, talvez, seja a criação da ordem final. Em O Paraíso Perdido, Milton sugere isso:

“O império do caos se estabelece,
E, por decisão, mais complica a desordem em que reina.
A seu lado, árbitro supremo,
O acaso governa tudo!”

Job era um homem justo. Numa disputa entre Deus e Satanás, suas provações foram levadas ao paroxismo. Nem seus amigos o pouparam na hora de suas dores. Apesar de tudo que sofria, não passava da queixa da “angústia do meu espírito...na amargura da minha alma” (Job, 7:11). No auge do desespero proclama estar “farto da minha vida; não quero viver para sempre” (Job, 7:16). Algo como uma preguiça de viver, de mágoa tão profunda que levaria qualquer vivente a proclamar: “Estou cansado de tanto gemer; todas as noites faço nadar o meu leito, de minhas lágrimas o alago” (Sl. 6:6).

O brado de desespero de Job chega ao limite ao descartar a própria esperança: “Onde está, pois, a minha esperança? Sim, a minha esperança, quem a poderá ver? Ela descerá até às portas da morte, quando juntamente no pó teremos descanso” (Job, 17:15,16). Quanta diferença daquele que diz: “Em paz me deito e logo pego no sono” (Sl, 4:8). Quem pode dizer, como o salmista, que cai facilmente nos braços de Morfeu? De fato, a singela recomendação de consultar “no travesseiro o vosso coração” (Sl. 4:4), remete à paz e à alegria maiores que daqueles que assim ficam “quando lhes há fartura de cereal e de vinho” (Sl4:7). Um sentimento do mundo próximo daquele de Spinoza. Não da pieguice vulgar satirizada por Eça, quando o conde de Abranhos versejava:

Deus existe, tudo o prova;
Desde tu altivo sol,
Até tu raminho humilde
Onde canta o rouxinol.

Mesmo após todas as tentações de Satanás, Job permanece fiel: “enquanto em mim estiver a minha vida, e o sopro de Deus nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão injustiça, nem a minha língua pronunciará engano” (Job, 27: 3,4).

A grande conclusão de Job (similar aos preceitos de Salomão), está no valor supremo da sabedoria: “Eis que o temor do Senhor é a sabedoria e o apartar-se do mal é o entendimento” (Job, 28:28).

Job pondera que na sua vida não houve desobediência aos preceitos divinos. Chega ao requinte de proclamar uma “aliança com meus olhos; como, pois, os fixaria eu numa donzela? Que porção, pois, teria eu do Deus lá de cima, e que herança do Todo-Poderoso desde as alturas?” (Job, 31:1,2). Recusando o verdadeiro pecado de Davi, insiste no tema da aceitação da punição... “Se o meu coração se deixou seduzir por causa de mulher, se andei à espreita à porta do meu próximo” (Job, 31:9). O crime de Davi não foi ter mandado matar a Urias – para ficar com Bathseba: foi ter olhado para ela. Isso que lhe conduziu à cobiça. Talvez daí o pacto, ou “aliança com meus olhos”, pois se não se vê não se deseja. Na sua conclusão, ele diz: “Se a minha terra clamar contra mim, e se os seus sulcos juntamente chorarem; se comi os seus frutos sem tê-la pago devidamente, e causei a morte aos seus donos, por trigo me produza cardos, e por cevada, joio” (Job, 31:38, 39,40).

Mas um dos amigos de Job tenta justificar os atos de Deus alegando que “retribuirá ao homem segundo as suas obras, e faz que a cada um toque segundo o seu caminho”, pois ...”Deus não procede maliciosamente; nem o Todo-poderoso perverte o juízo” (Job, 34:11,12)

No entanto, as manifestações do poder do Eterno são tão incompreensíveis como o são “os animais” (Behemoth). Seu tamanho é tão grande que se usa o plural na expressão hebraica (que pode significar o elefante ou o hipopótamo); ou, ainda, o Leviatan (que pode se referir à baleia ou ao crocodilo). Mas o Senhor foi generoso, ao final, após o embate com Satanás. Job – no caso – entrou no processo como Pilatos no Credo. Ao repor as perdas de todos os tipos sofridas pela inocente vítima ... “abençoou o Senhor o último estado de Job mais do que o primeiro” (Job, 42:12), dando-lhe riquezas, filhos e longevidade e “então morreu Job, velho e farto de dias” (Job, 42:17)

O desencontro entre um homem e seu Deus, por insondáveis que sejam os Seus desígnios, fica assim marcado para todo o sempre. Talvez nessa estreita brecha esteja uma das fontes do Mal. Talvez, deste modo, se possa compreender a ocorrência, entre simples mortais do “desencontro contínuo das almas congêneres - neste mundo de eterno esforço e de eterna imperfeição” (Cf. Eça de Queiroz: A Relíquia). Almas congêneres, aliás, costumam perceber, sentir, sua presença:

“- Diz lá, Alpedrinha! Tem-la visto, a Maricoquinhas? Que tal está? Hein? Rechonchudinha?
Ele baixou o rosto murcho, onde um estranho rubor lhe avivara duas rosas.
- Já não está... Foi para Tebas!
- Para Tebas? Onde há umas ruínas?... Mas isso é no alto Egito! Isso é em cascos de Núbia! Ora essa!... Que foi ela lá fazer?
- Alindar as vistas, com um amigo – murmurou Alpedrinha com desolação.
Alindar as vistas! Só compreendi quando o patrício me contou que a ingrata rosa de York, adorno de Alexandria, fora levada por um italiano de cabelos compridos, que ia a Tebas fotografar as ruínas desses palácios onde viviam face a face Ramsés, rei dos homens, e Amnon, rei dos deuses... E Maricoquinhas ia amenizar “as vistas” do amigo, aparecendo nelas, à sombra austera dos granitos sacerdotais, com a graça moderna do seu guarda-solinho fechado e do seu chapéu de papoulas...
- Que descarada! – gritei eu, varado. – Então com um italiano? E gostando dele? Ou só negócio?... Hein, gostando?
- Babadinha – balbuciou Alpedrinha.
E, com um suspiro, atroou o Hotel de Josafá. Perante este ai, repassado de tormento e de paixão, relampejou-me na alma uma suspeita abominável.
- Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui há perfídia, Alpedrinha!
Ele baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que ele o levantasse já eu lhe empolgara com sanha o braço mole.
- Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hein? Também petiscaste?
A minha face barbuda chamejava... Mas Alpedrinha era meridional, das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho. O medo cedeu à vaidade, e revirando para mim o bugalho branco do olho:
- Também petisquei!
Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Também aquela – com aquele! Oh, a terra! A Terra! Que é ela senão um montão de coisas podres, rolando pelos céus com bazófias de astro?
- E dize lá, Alpedrinha, dize lá, também te deu uma camisa?
- A mim um chambrezinho...
Também a ele – roupa branca! Ri, acerbamente, com as mãos nas ilhargas.
- E ouve lá... Também te chama “seu portuguesinho valente”?
- Como eu servia com turcos, chamava-me “seu mourozinho catita”.
Ia rebolar-me no divã, rasgá-lo com as unhas, rir sempre, num desesperado desprezo de tudo... Mas Topsius e o risonho Potte apareceram alvoroçados...” (Cf. Eça de Queiroz: A Relíquia).

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