“Dilma
Rousseff não para de nos surpreender. Agora disse que o papel da imprensa não é
o de investigar, mas, sim, divulgar as informações que produzem os órgãos do
governo.
Minha
surpresa é maior ainda. Dilma apresentou a Lei de Acesso à Informação, depois
de longo trabalho da Associação Brasileira do Jornalismo Investigativo. A lei
foi impulsionada pelo trabalho do jornalista Fernando Rodrigues, que sugeriu a
criação de uma frente parlamentar, monitorou todas as reuniões da comissão da
Câmara que analisou o projeto, organizou seminários e trouxe gente de vários
países para falar sobre o tema. Por que tanto empenho dos repórteres na
aprovação de uma lei de acesso? O próprio nome de sua entidade é uma pista que
Dilma não poderia desprezar: jornalismo investigativo.
Dizer
que a imprensa não deve investigar é o mesmo que dizer que um centroavante não
deve fazer gols. É uma frase absurda até para quem não conhece bem o futebol. E
absurda para quem conhece o papel histórico da imprensa. A geração de Dilma
acompanhou o escândalo do Watergate, que encerrou a carreira de Richard Nixon.
Ela sabe disso e usou o tema para dizer que sua frase foi interpretada
erroneamente. Com um pedacinho de papel na mão, ela tentou consertar o
desastre.
Poderia
passar o dia citando casos de importantes investigações da imprensa. Prefiro
mencionar os casos de governos que pensam que esse não é o papel dos
jornalistas. Vladimir Putin, por exemplo, também acha que o papel da imprensa
não é investigar. A jornalista Anna Politkovskaia resolveu investigar o
trabalho das tropas russas na Chechênia e foi assassinada. Sua morte chamou a
atenção do mundo para a repressão contra a imprensa na Rússia.
A China
expulsa correspondentes estrangeiros com frequência, ora por tentarem entrar em
áreas proibidas no Tibete, ora por mencionarem a fabulosa riqueza pessoal dos
burocratas que dirigem o país. E o jornal cubano Granma jamais vai investigar
de forma independente um desmando do governo porque o castigo é desemprego,
prisão e até pena de morte.
O
jornalistas brasileiro Vladimir Herzog foi morto sob tortura durante o regime
militar não tanto porque investigou, mas talvez porque só desconfiasse
ativamente das notas oficiais da ditadura. No governo do PT não se persegue ou
mata jornalista, dirão seus defensores. Mas não deixa de ser inquietante
suspeitar que isso não se faça agora só porque a correlação de forças não
permite. Um dirigente petista chamado Alberto Cantalice fez uma lista de nove
jornalistas que considera inimigos, preocupando as entidades do setor aqui e
fora do Brasil.
A frase
de Dilma pode ser considerada um ato falho. Os intelectuais que se mantêm fiéis
ao esquema, apesar das evidências de sua podridão, sempre vão encontrar uma
forma de atenuar essa barbaridade. E os marqueteiros, um pequeno texto para
convencer de que ouvimos mal o que Dilma disse. Os ato falhos, tanto em
campanha como fora dela, são extremamente didáticos. No caso, a frase de Dilma
revela com toda a clareza o pensamento autoritário da presidente: cabe ao
governo produzir as informações e à imprensa divulgá-las ou até criticá-las, o
que os jornalistas não podem é buscar os dados por conta própria.
Numa
célebre intervenção sobre a espionagem americana, Dilma contou ter dito a
Barack Obama: "Quando a pasta de dente sai do dentifrício, não pode mais
voltar". Certas frases, quando escapam, têm o mesmo destino do creme
dental: não podem voltar para o tubo, que é o artefato que Dilma queria
mencionar ao dizer dentifrício. Espero que Obama a tenha entendido, com a
mediação dos intérpretes. Creio que a entendo muito bem quando diz que o papel
da imprensa não é investigar.
O
governo petista pôs o Congresso de joelhos e alterou substancialmente a
correlação de forças no Supremo Tribunal. Ele considera que a ocupação de todos
os espaços vai garantir-lhe não só governar como quiser, mas o tempo que
quiser. Porém a imprensa e as redes sociais ainda escapam ao seu controle. E
creio que escaparão sempre, pois o País está dividido. O que mantém tudo
funcionando é a existência de gente curiosa, que lê, troca informações e gosta
de ser informada por órgãos independentes do governo. Mesmo se Dilma for
reeleita, com sua truculência mental, uma considerável parte do Brasil que
rejeita os métodos e o discurso do PT continua por aí, cada vez mais forte e
mais crítica.
Apesar
da alternância democrática, certos governos podem durar muitos anos. Mas creio
ser impossível se perpetuarem quando têm a oposição das pessoas que prezam a
liberdade.
Liberdade
de quê?, perguntariam. Consumir mais, melhorar a renda não ampliam a liberdade?
Ao se impor na Franca, o socialismo de Jean Jaurès e, mais tarde, de Léon Blum
dizia que a justiça política tinha de se acompanhar da justiça econômica. Blum
era um fervoroso e racional defensor da República. O PT inventou que seus
opositores não gostam de pobre em aviões ou em shopping centers, que a oposição
ao seu governo é fruto de intolerância classista.
Exceto
um ou outro idiota, ninguém é contra a presença de pobres em aeroportos ou
shoppings. O PT deturpou a ideia de República. Em nome de melhorias econômicas,
armou o maior esquema de corrupção da História e agora flerta abertamente com a
supressão da liberdade de imprensa. Ele usa uma aspiração republicana para
sufocar as outras e seu líder máximo, amarfanhado, se veste de laranja para
defender de inimigos imaginários a Petrobrás, que o próprio governo assaltou.
Suas farsas estão mais grotescas e os atos falhos, mais inquietantes.
Sou do
tempo do mimeógrafo. Ainda que consigam devastar a imprensa e proibir a
internet, publicações clandestinas seguirão contando a história. Não faremos
comissões futuras para investigar a verdade. Vamos conquistá-la aqui e agora,
porque, como diz Dilma, a pasta saiu do dentifrício, ou o dentifrício saiu da
pasta. Só não vê quem não quer ou é pago para confundir.
Estranho,
mas não tenho nenhum medo de governos autoritários. Apenas uma sensação de
tristeza e preguiça por ter de voltar a esses temas na segunda década do século
21”.
*Fernando
Gabeira é jornalista.
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