sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O banqueiro anarquista (Fernando Pessoa)

(Em homenagem a Joaquim Levy, o banqueiro do PT)


“Tínhamos acabado de jantar. Defronte de mim o meu 
amigo, o banqueiro, grande comerciante e açambarcador
notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que
fora amortecendo, jazia morta entra nós. Procurei reanimá-la, 
ao acaso, servindo-me de uma ideia que me passou pela
meditação. Voltei-me para ele, sorrindo.
- É verdade: disseram-me há dias que V. em tempos 
foi anarquista...
- Fui, não: fui e sou. Não mudei a esse respeito. Sou anarquista.
- Essa é boa! V. anarquista! Em que é que V. é anarquista?... 
Só se V. dá à palavra qualquer sentido diferente...
- Do vulgar? Não; não dou. Emprego a palavra 
no sentido vulgar.
- Quer V. dizer, então, que é anarquista exatamente no
 mesmo sentido em que são anarquistas esses tipos das 
organizações operárias? Então entre V. e esses tipos da
bomba e dos sindicatos não há diferença nenhuma?
- Diferença, diferença, há... Evidentemente que há 
diferença. Mas não é a que V. julga. V. duvida talvez que 
as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?...
- Ah, já percebo! V., quanto às teorias, é anarquista; 
quanto à prática...
- Quanto à prática sou tão anarquista como quanto 
às teorias. E quanto à prática sou mais, sou muito mais, 
anarquista que esses tipos que V. citou. Toda a minha vida o mostra.
- Hein?!
- Toda a minha vida o mostra, filho. V. é que nunca deu 
a esta cousas uma atenção lúcida. Por isso lhe parece que 
estou dizendo uma asneira, ou então estou brincando consigo.
- Ó homem, eu não percebo nada!... A não ser..., a não ser
que V. julgue a sua vida dissolvente e anti-social e 
dê esse sentido ao anarquismo...
- Já lhe disse que não - isto é, já lhe disse que 
não dou à palavra anarquismo um sentido diferente do vulgar.
- Está bem... Continuo sem perceber... Ó homem, 
V. quer-me dizer que não há diferença entre as suas 
teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua 
vida - a prática da sua vida como ela é agora? V. quer 
que eu acredite que V. tem uma vida exatamente igual à 
dos tipos que vulgarmente são anarquistas?
- Não; não é isso. O que eu quero dizer é que entre as minhas 
teorias e a prática da minha vida não há divergência nenhuma, 
mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma vida 
como a dos tipo dos sindicatos e das bombas - isso é verdade. 
Mas é a vida deles que está fora do anarquismo, fora dos 
ideais deles. A minha não. Em mim - sim, em mim, banqueiro, 
grande comerciante, açambarcador se V. quiser -, em mim
a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e 
ambas certas. V. comparou-me a esses parvos dos sindicatos e 
das bombas para indicar que sou diferente deles. Sou, mas a 
diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas 
só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas 
e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu 
é que sou o verdadeiro anarquista. Eles - os dos sindicatos e 
das bombas (eu também lá estive e saí de lá exatamente 
pelo meu verdadeiro anarquismo) - eles são o lixo do 
anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária.
- Essa nem ao diabo a ouviram! Isso é espantoso! Mas como 
concilia V. a sua vida - quero dizer a sua vida bancária e 
comercial - com as teorias anarquistas? Como o concilia V., 
se diz que por teoria anarquista entende exatamente o que 
os anarquistas vulgares entendem? E V., ainda por cima, 
me diz que é diferente deles por ser mais anarquista do 
que eles - não é verdade?
- Exatamente.
- Não percebo nada.
- Mas V. tem empenho em perceber?
- Todo o empenho.
 Ele tirou da boca o charuto, que se apagara; reacendeu-o 
lentamente; tirou o fósforo que se extinguia; depô-lo ao 
de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, 
um momento abaixada, disse:
- ....”


(O texto genial de Pessoa continua no mesmo ritmo. A obra está disponível na internet em http://www.cfh.ufsc.br/~magno/bancanarco.htm)

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