quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Intolerância seletiva

Autoridades da UFMG puniram duramente estudantes da Faculdade de Direito, em decorrência de sua participação em trote de calouros ocorrido em março de 2013. Menos mal que tenham sido somente quatro os perigosos transgressores (curiosamente, três deles com o angelical nome Gabriel). A intenção inicial dos dirigentes era atingir quase duas centenas de alunos (198, para ser mais exato). Talvez por pudor, talvez por surto de sensatez, tão intensa sanha repressiva contra universitários - sanha não conhecida nem no período autoritário dos militares - tenha se contentado em concentrar o processo disciplinar tão somente em alguns poucos escolhidos. Os demais já ficariam o suficientemente estimulados. O rei Cristophe, do Haiti, ao que consta, gostava de eventualmente decapitar dez por cento da população do reino com o fito de, pedagogicamente, estimular os sobreviventes. Punição coletiva, enfim, só tem guarida em tiranias tribais e regimes totalitários, como mostram os exemplos de países vitimados pelos nazistas e comunistas. Não pegaria bem exercitar tal fuzilaria, devem ter considerado os possuídos pelo espírito de Torquemada.

A experiência histórica costuma mostrar, afinal, que aquilo que está ruim sempre poderia ficar pior: no caso, uma redução de 98% no total de investigados já ficou de bom tamanho; cem por cento seria um desastre.  Faz lembrar episódio de maio de 1933 ocorrido em Berlim, três meses após a subida de Hitler ao comando da Alemanha. Multidão (liderada por uma espécie de UNE da época, dita Liga dos Estudantes Alemães, gente que hoje chamaríamos de "politicamente correta"), resolveu tocar fogo em montanhas de obras literárias escritas por judeus. Informado da queima de seus livros pelos nazistas (juntos com os de outros notáveis pensadores e cientistas como Einstein, Mann, Kafka, etc.), Freud ponderou que o incidente não foi tão mal assim; antigamente, continuou o pai da psicanálise, era pior; eles costumavam queimar os autores, não os livros. Freud não o soube, pois morreu antes, mas o holocausto acabou chegando. Heine, sim, já o profetizara um século antes (em um lugar onde se queimam livros, dizia, depois se passa a queimar pessoas).

Sempre é bom relembrar fatos do tipo que ajudem a entender condutas extravagantes e esquecidas, principalmente da parte de autoridades circunstanciais. Por não dar atenção à memória (certamente por esquecimento dos idos nos anos 30 do século passado), professores da rede pública de São Paulo, em fevereiro de 2010, tiveram também um ataque de fúria piromaníaca, incinerando livros em plena avenida Paulista, sob o comando de notória dirigente sindical partícipe de espantoso Conselho Nacional de Educação, o mesmo que quis censurar Monteiro Lobato por racismo.  Esse tal conselho, aliás, ainda será objeto de estudo num futuro não muito distante como provável tipo do fascismo do bem.

Em fotos do trote referido acima, jovens usando bigodes iguais aos de Hitler aparecem erguendo o braço direito numa referência a uma saudação nazista. Ao lado deles aparecia um calouro amarrado em uma pilastra. Em outra imagem uma estudante pintada de preto estava acorrentada por um veterano com a inscrição "caloura Chica da Silva". Assim está retratada a situação que acarretou as punições, conforme publicado no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, de 13 de agosto de 2014. O clima refletido pelas fotos da festa era de farra etílica e de molecagem: zombarias de gosto discutível, próprias de gente com mentalidade em formação. Segundo o mesmo jornal, os julgadores da patuscada estudantil entenderam, porém, que "as imagens são repulsivas e remontam a situações simbólicas de discriminação histórica" e que "o trote atenta contra as conquistas da liberdade, igualdade e diversidade garantidas juridicamente". Daí, sentenciou o Magnífico Reitor da universidade, "atos como esses não podem ser tolerados; por isso a punição imposta aos estudantes foi totalmente adequada". Sua Magnificência deve ter se esquecido que liberdade de opinião é liberdade para a opinião dos outros, por mais detestável que ela seja. Vi e ouvi alunos, naquele deplorável 11 de setembro, aplaudindo a destruição e as mortes inumeráveis nas torres gêmeas em Nova York. Deveria tê-los expulsado da sala de aula? Ouvi inúmeras vezes comentários em defesa do Hamas, pregando a destruição de Israel. Deveria punir os autores de tal opinião pela granítica estupidez demonstrada? Não é incomum encontrar no mundo universitário gente que defende, com unhas e dentes, a validade do terrorismo do passado, do presente e do que ainda vai acontecer. Qual a solução para este caso?

Eventuais resultados positivos das punições que estigmatizaram alguns podem vir a ocorrer, espera-se. É possível que, a partir de agora, manifestações estudantis que evoquem figuras caricatas e criminosas (Che Guevara, Fidel, Mao Tsé Tung e outros), bem como outros símbolos usuais do totalitarismo contemporâneo venham a ser reprimidas também. Nos corredores das universidades, e nas entidades estudantis, as paredes e as roupas costumam ostentar tais repulsivas imagens sem quaisquer censuras institucionais. O lixo da suástica e o lixo da foice e do martelo têm ambos os mesmos fundamentos e geram resultados equiparáveis. Todos são inimigos da democracia constitucional virtuosa. A eles podem ser agregados, presentemente, os símbolos que nascem sob as barbas dos aiatolás atômicos (homofóbicos e misóginos), e seus aliados.

Medidas outras - igualmente relevantes para garantir as conquistas da liberdade, igualdade e diversidade - são esperadas, reprimindo transgressões que atentem contra a cidadania e contra a legislação vigente, e que, no entanto, são solenemente negligenciadas pelas mesmas autoridades, implacáveis contra alunos imaturos. Fuzarcas em posse de diretoria de unidade acadêmica, com farta distribuição de bebida alcoólica aos presentes (foi noticiado pela imprensa da capital mineira), além de violações acintosas de normas legais que vedam a utilização de patrimônio público em favor de partidos políticos são públicas e notórias. Mas aqui não se vê a mesma dureza com que foram tratados jovens de comportamento destrambelhado; aqui só se vê complacência e cumplicidade. Tolices de estudantes, que deveriam ser educados - afinal é esta a missão de uma escola - são sancionadas com a ferocidade de justiceiros. Nem a turma de mensaleiros foi tratada com rigor equivalente; tiveram, e têm, todos os atenuantes possíveis. Para criminosos que atentam contra a probidade administrativa - os bons companheiros - lhes cabe a doce e silenciosa compreensão. Já se chegou, por exemplo, a condescender com o uso de veículo institucional de comunicação da UFMG para acintosa campanha em favor da candidatura presidencial de dona Dilma. A grande imprensa noticiou o fato. Trouxe alguma consequência? Nenhuma. Em suma como se diz no popular: aos inimigos, os rigores da lei; aos indiferentes, a lei; aos amigos, os favores da lei.


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