Quando a realidade política e social se degrada e atinge o
insuportável, o discurso apodrece, evidencia sinais de morte. As formas
administrativas do Brasil agonizam. Contra o que dizem muitos colegas da
universidade, seguidos por inúmeros jornalistas, discordo da tese segundo a
qual as nossas instituições “funcionam normalmente”. A menos, claro, que o
critério da normalidade seja o hábito de formar quadrilhas para o roubo das
riquezas físicas ou espirituais de um povo.
Mesmo em situações de crise a
instituição e os indivíduos que a manejam devem manter o decoro. Esse é um
cálculo difícil. Um gramático inglês do século 16 exemplifica: se a duquesa vai
à corte, ela não pode usar roupas mais brilhantes do que a rainha. Mas se a
mesma pessoa usa vestimentas inferiores às de suas iguais, é indecorosa. No
cálculo do aceitável em sociedade, consideram-se o corpo próprio e os demais. E
cada um merece tratamento relativo à sua dignidade.
O decoro surgiu na Grécia e
recebeu um nome: Aidós. Trata-se da vergonha imposta a quem não se comporta em
público. Penas severas eram aplicadas aos que, por educação falha ou vício de
caráter, desrespeitavam os cidadãos de Atenas. Sem a vergonha os valores
democráticos empalidecem porque o corpo e a língua indecorosos mostram que a
lei foi corroída pela selvageria.
Na Idade Média o decoro foi
retomado pelos monges. A roupa e os gestos não poderiam depor contra um
religioso que, supostamente, tinha optado pela pobreza. Frades vestidos como
barões eram a prova de que os votos sagrados haviam sido desobedecidos. Daí o
uniforme das ordens, sem enfeites de prata, ouro, pedras preciosas. A “dama
pobreza”, segundo Francisco de Assis, exige que seus pretendentes vivam como
ela, vestida apenas pela graça divina. A língua deveria seguir a mesma regra.
Da Renascença em diante, o decoro
passou a nortear as palavras, as roupas, os gestos dos reis, dos nobres, dos
burgueses. Ele é um exercício de respeito aos outros e meio de garantir o
respeito a si mesmo. Quem não tem prerrogativas, mas quer exercê-las, é
indecoroso. Um hóspede que toma o papel da dona da casa, indicando aos demais o
lugar onde devem tomar assento, é indecoroso. E se a anfitriã deixa o
indiscreto fazer o gesto inconveniente, ela é indecorosa. Sua prerrogativa não
deve ser negada sequer pelo marido, pelos filhos, pais, etc. Se um bispo comum,
numa visita papal, ousa dar a bênção Urbi et Orbi... ele não apenas
enlouqueceu, mas seu ato é indecoroso.
Uma regra que ajuda a decidir as
inclinações à moda chinesa, quando pessoas estão diante da porta: não é a mais
jovem, mais bonita, mais velha a ceder a passagem. Dá o lugar quem o possui. Se
o mais jovem é presidente da República, ele cede a passagem, primeiro aos
velhos, depois às mulheres, depois aos demais. Não é falta de respeito um
inferior na escala governamental passar primeiro. É indecoro do que detém o
mais alto cargo não ceder a passagem, mostra que ele ignora a etiqueta e as
verdadeiras prerrogativas do seu posto.
Assim, na escrita, diz o citado
gramático inglês do século 16: se um autor não usa imagens no texto, é
indecoroso por desprezar a fantasia e o gosto do leitor. Se as usa aos
borbotões, é indecoroso, pois despreza inteligências e culturas. O poeta
decoroso jamais dirá algo como “a face rosada e fina do general”. É indecente
um general ter faces que só cabem às crianças e às raparigas em flor.
Se uma autoridade quer ser
respeitada, deve respeitar o povo (que fica chocado com palavrões e outras
marcas de indecoro). Certas falas devem ser evitadas. Não por causa do
hipócrita “politicamente correto”. Trata-se de algo sério. Os reitores são
“magníficos”, mesmo se não ostentam magnificência. A comunidade acadêmica é a
proprietária do título, usado em seu nome. Deputados, senadores, edis são “excelentíssimos”
não porque sejam dotados de excelência.
O título pertence ao soberano, o que
possui a maiestas,
termo latino para designar o ente mais elevado no coletivo. Na monarquia, a maiestas é apanágio do rei, que usa o
título em nome do povo. Na democracia é o próprio povo que a empresta, a cada
eleição, aos representantes. É assim que o decorum exige
tratar o povo com respeito. Não por “boa educação”, mas por subordinação da
“autoridade” diante de quem a “autoriza”. E a regra funciona para todos os
Poderes, incluindo o Judiciário e o militar. Sem tal respeito, temos larápios
da soberania, não representantes.
A expressão “soberania popular” e
o termo “majestade” incomodam ouvidos indecentes. Mas eles permitem reconhecer
a força das normas democráticas. Somos herdeiros do mundo grego e latino em
práticas e valores. O Direito e a política não fogem à regra. No Estado moderno
as ideias de soberania e majestade, contra o exercício ditatorial ou aristocrático
do mando, aplicam-se à totalidade dos cidadãos (Thomas, Y., L’Institution
de la Majesté, em Revue de Synthèse, julho/dezembro de 1991).
Faltar com o decoro diante da maiestas é destruir a fé pública. Um político
não tem o direito de ser leviano. Seu ofício exige ponderação, a gravitas.
Para os romanos, a gravitas comanda
uma atitude “que não se curva em proveito do sucesso político passageiro"
(Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince).
O representante não pode tratar
os cidadãos como crianças. Ele deve ser o portador de uma gravitas
dicendi. “Suruba”, “canalha” e quejandos são termos levianos. A boca
suja pode ser aceita entre malandros, na sua vida íntima. Mas na língua de quem
decide sobre os bens públicos, com repercussões vitais sobre o País, semelhantes
vocábulos indicam apenas... levitas indigna
de qualquer democracia.
Se as mãos de muitos políticos
brasileiros estão sujas, que eles pelo menos limpem a língua. De preferência
com muito sabão.
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