quinta-feira, 28 de maio de 2015

Hayek no Brasil (Rodrigo Constantino)


Entre as riquezas na galeria do Instituto Liberal-RJ, pioneiro no Brasil em defesa dos princípios da ordem liberal, está um interessantíssimo documento histórico organizado por Cândido Mendes Prunes, com lançamento em 2006: o livro Hayek no Brasil. Para quem não sabe, a convite do empresário paulista Henry Maksoud, francamente simpático ao liberalismo econômico, o Prêmio Nobel de Economia de 1974, Friedrich Hayek, ícone da Escola Austríaca e conhecido pelos poucos em nossa academia que se referem a ele – geralmente de forma pejorativa – como “pai do neoliberalismo” (sic), esteve várias vezes no país. Hayek ficou famoso por se preocupar com filosofia política em geral tanto quanto com sua disciplina específica, a economia, e por ter feito muito barulho com o best seller clássico O Caminho da Servidão (1944), um verdadeiro libelo contra o avanço do Estado sobre a livre iniciativa e os delírios e riscos totalitários do planejamento centralizado. No período abarcado em Hayek no Brasil, entre o fim dos anos 70 e a primeira metade dos anos 80 (Hayek faleceu em 1992), nosso país estava submetido ainda a um regime militar e, sob a administração Geisel e a gestão de Delfim Netto à frente do Planejamento, adotou as políticas econômicas mais estatizantes que se poderia conceber. Hayek, a convite de Maksoud, encarou então um terreno bastante hostil às suas pregações por Estado de direito e retração da máquina burocrática. Isso, somado aos registros de entrevistas, resenhas jornalísticas e artigos que o livro reúne, como uma espécie de documento histórico das visitas do grande austríaco, revela muito sobre quem ele realmente era.

A começar pelo seu espírito ativista e intrépido. Receando rótulos, ora dizendo-se liberal, ora dizendo-se libertário, tendo escrito um artigo intitulado “Por que não sou conservador” – mas dizendo, em sua entrevista à revista Visão de Maksoud em 1984 que as verdadeiras soluções para os problemas dos EUA e da Grã-Bretanha estariam no “retorno ao conservadorismo, ao liberalismo clássico, moeda estável e empresas livres”, e sendo referenciado, no Digesto Econômico de São Paulo, 1981, como tendo dito que “os liberais de sua espécie têm muito que aprender com alguns pensadores conservadores” -, Hayek já tinha sido na juventude, como confessa diversas vezes, até um socialista fabiano, antes de conhecer o mestre Ludwig Von Mises. O que ele define sempre como a tônica de sua orientação definitiva, basicamente, é a vinculação ao Iluminismo escocês, ao velho Whiggismo, com inspiração em figuras como Hume, Adam Smith e Burke. Isso o leva a uma rejeição contumaz, como ele frisa em quase todos os artigos e entrevistas reproduzidos, a um pensamento “construtivista” que brota dos extremos do Iluminismo francês, levando o racionalismo – ou, para Hayek, uma falsa razão – a se crer capaz de revolver as estruturas sociais e “desconstruí-las” para reorganizá-las rumo à “perfeição ideal”, com resultados supostamente mais eficientes que os produzidos pelos desenvolvimentos “naturais” através da “ordem espontânea da sociedade”, que envolvem elementos e processos impossíveis de serem plenamente controlados pela mente humana. Essa posição moderada em política, porém, não quer dizer jamais que não se deva batalhar com valentia por estampar essas verdades para o mundo. Submetendo-se ao escárnio de acadêmicos, que, àquela época, achavam pouco lisonjeiro que um estudioso sério fosse leitura popular e mobilizasse posturas ativistas, Hayek disse que “os intelectuais liberais devem ser agitadores, devem derrubar a opinião corrente hostil à economia capitalista”. Os documentos de Hayek no Brasil provam que não “fugia da raia”; veio para cá algumas vezes, como esteve em vários outros países, para divulgar sua bandeira da liberdade e propor mundialmente seu desafio intelectual e moral aos socialistas. Mais que uma mente brilhante, Hayek foi, sem medo de errar, um bandeirante de uma causa e um legítimo guerreiro.

Um charme bastante peculiar do livro para os brasileiros está na presença de outros nomes nacionais além de Maksoud, como Eugênio Gudin, que já defendia a liberdade econômica desde os tempos varguistas e tem, como outros economistas brasileiros, seu valor reconhecido por Hayek. Hayek, perguntado sobre as orientações econômicas de Delfim Netto, sarcasticamente responde “não conheço esse senhor”, e também alega não conhecer bem a realidade e o histórico do Brasil, mas sustenta que os remédios para nossos problemas residem também no mesmo receituário liberal do fim da emissão descontrolada e irresponsável de moedas e na liberação da economia. O livro também explicita, como curioso pano de fundo, as divergências, ainda que com profundo respeito, entre Hayek e Milton Friedman sobre a necessidade de um remédio mais ou menos rápido e drástico no combate à inflação, tomando por exemplo prático a britânica Margaret Thatcher, estadista mais admirada pelo austríaco que se dizia um autêntico “cidadão britânico”.

Entre todas as brilhantes exposições do pensamento e da personalidade de Hayek, o livro permite perceber a importância que ele dava a duas concepções teóricas que desenvolveu: a desestatização do dinheiro e a “demarquia”. Como resume o Jornal do Brasil de dezembro de 1977, ele defendia a “livre concorrência de moedas, alegando que a empresa privada seria obrigada a produzir bom dinheiro para dispor de um negócio lucrativo, ao contrário do Governo, que simplesmente obriga a população a utilizar seu tipo-padrão de dinheiro”; quanto à “demarquia”, seria um sistema diferente da democracia “perigosamente ilimitada” que Hayek julga ser uma tendência nas sociedades ocidentais, pervertendo as virtudes da verdadeira democracia. Sua receita exótica seria a criação de duas assembleias: uma verdadeiramente Legislativa, com a função de “formar e estabelecer os princípios fundamentais que reflitam as aspirações da sociedade, velando pela observância de tais princípios, inclusive sobre o próprio governo”, e que deveria estar “isenta de qualquer exercício de pressão”, tendo os componentes eleitos apenas uma vez, por um longo período (ele sugere 15 anos), sendo o acesso a essa “câmara alta” condicionado a uma respeitabilidade adquirida entre os contemporâneos, não podendo ser os candidatos menores de 45 anos. À outra câmara, eventualmente chamada de “Assembleia Governante”, é que caberiam as práticas menos abrangentes.

Não é preciso concordar com as teses para reconhecer os méritos dos diagnósticos que as motivam. A percepção geral de Hayek é que o casamento entre liberalismo e democracia precisa ser mais cuidadoso e objeto de melhores reflexões, porque os exageros “rousseaunianos” no caminho do “democratismo radical” fizeram com que as esferas abrangidas pelo escopo da “vontade da maioria” passassem a avançar, sob muitos aspectos, sobre as “regras rígidas” (ou “cláusulas pétreas”) que deveriam resguardar os direitos da esfera individual e minoritária. Muitos tiranos foram aclamados democraticamente. Essa mensagem polêmica e mal compreendida, desfraldada com tal valentia e objetividade, fornece a imagem precisa do valor do gigante que esteve chacoalhando os corações servis do socialismo no tormentoso século XX. Recomendamos vivamente travar contato com os inspiradores registros de sua presença nestas plagas tupiniquins, tão necessitadas de vários elementos do seu corajoso recado.

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