"Num texto endereçado a cineastas, Chris Marker citou uma frase de De Gaulle: às vezes os militares, exagerando a impotência relativa da inteligência, descuidam de se servir dela. Marker defendia filmes inteligentes contra o populismo de alguns pares. Creio que De Gaulle criticava a superestimação da força armada. Algo que ficou célebre na pergunta atribuída a Stalin: quantas divisões tem o papa?
A oposição brasileiro tem se descuidado de
usar a inteligência não por valorizar a força armada, mas as possibilidades
eleitorais. Quantos votos nos dará esse projeto? Foi assim com a derrubada do
fator previdenciário. Nada mais agradável do que votar pelos aposentados e ao
mesmo tempo ganhar um bom número de votos.
Norberto Bobbio dava muita importância à
questão da aposentadoria e a considerava um elemento divisor entre os conceitos
de esquerda e direita. Não vejo assim no Brasil. A ideia de um sistema que
garanta aposentadoria digna é universal no espectro político.
As coisas se complicam quando se discute a
sustentabilidade do sistema. Tensioná-lo com mais gastos num momento de crise
aguda acaba despertando propostas como a de Joaquim Levy: aumentos de impostos.
Um projeto político no capitalismo não implica apenas respeito às normas
democráticas. Implica também a admissão das próprias leis do capitalismo. Se
nos levamos apenas pelo coração, faremos muitas bondades até que chegue o
momento de pagar a conta. Os deputados jogaram essa conta para o governo, que,
por sua vez, a transfere, via impostos, para a sociedade.
Quando Levy fala em ajustar a economia e,
simultaneamente, em aumentar impostos a partir das bondades parlamentares, suas
tesouras são apenas um passatempo como agulhas de crochê. As tesouras de Levy
refletem o mesmo conflito de ideais socialistas com as leis do capitalismo. E a
oposição tem de se manifestar claramente sobre isso: é um modelo de crescimento
que faliu. Derrotá-lo não significa usar os mesmos métodos populistas,
certamente com grandes dividendos eleitorais. Derrotá-lo é propor um novo
caminho.
O caso das pensões e dos salários de
pescadores, embora tenha distorções, no meu entender, merecia rejeição, ao
menos para negociar.
Como começar um ajuste fiscal sem conhecer
os cortes do governo? Este é o tema mais importante no ajuste. É nele que uma
visão de oposição tende a se fixar: a racionalização da máquina, a redução de
inúmeros e inúteis cargos de confiança.
Minhas críticas são feitas de fora, o
trabalho na estrada não permite conhecer todos os dados. Mas a oposição precisa
mostrar uma certa coerência com o próprio programa. O problema de votar, em
alguns momentos, com o governo também é eleitoral: medo de desapontar o
eleitorado que rejeita Dilma e o PT.
Mas é preciso dividir as esferas de
atuação: um programa claro sobre o ajuste econômico e um trabalho sério sobre a
corrupção, reconstruir e punir. A responsabilidade pela devastação da
Petrobrás, a gestão temerária, o escândalo do desvio de bilhões é um fato
histórico ainda em movimento, pois a Justiça não se manifestou sobre ele.
Nesse contexto, um fervoroso eleitor de
Dilma é indicado para ministro do Supremo. Os principais nomes da oposição
faltaram à sabatina. Era preciso fazer perguntas, descortinar a visão política
de Luiz Edson Fachin e apresentar uma interpretação de seu discurso.
Não posso dizer que a culpa seja de
Fernando Henrique Cardoso. Cada um avalia as prioridades, organiza a agenda, é
uma escolha política: a homenagem a Fernando Henrique em Nova York ou a
sabatina de candidato ao Supremo no Brasil. O resultado é que não foi dada toda
a atenção à hipótese de o governo aparelhar o Supremo e bloquear as conquistas
da Operação Lava Jato.
Estou, talvez, reduzindo a escolha de um
juiz a um fato conjuntural. Mas o escândalo da Petrobrás é mais que isso, é o
espaço em que se vai jogar o que mais interessa às pessoas que foram às ruas:
avançar na luta contra a corrupção.
Vivemos um momento em que nem governo nem
oposição se movem de forma articulada, com ideias claras e compartilhadas sobre
sua trajetória. Vivi outros momentos assim, mas muito rápidos. Usávamos uma
expressão para descrevê-los: a vaca não reconhece seus bezerros.
Num texto para homenagear Robert Frost,
John F. Kennedy escreveu: a poesia é o meio de salvar o poder de si próprio.
Sem menosprezar a poesia, tenho uma expectativa mais pedestre: só as pessoas,
com suas dificuldades cotidianas, sonhos e frustrações e pequenas conquistas,
podem salvar o poder de sua degradação. Nenhuma força política parece
preocupada em responder a essa expectativa com um projeto coerente, verificável
nos movimentos cotidianos.
O Congresso parece desgovernado. Vota,
simultaneamente, medidas de contenção e de mais gastos. Os repórteres estão
sempre fazendo contas para verificar se estamos economizando ou gastando mais.
Era esperado um choque de posições no
debate do ajuste; os setores atingidos procuram se defender: não há nenhuma
previsibilidade de mudanças no tamanho da máquina nem o tipo de País que vai
surgir desse debate. Vendo as universidades federais fluminenses em ruína antes
mesmo da aplicação dos cortes, é razoável duvidar da retomada do crescimento com
um simples ajuste fiscal. Tudo o que não funciona nos serviços públicos vai
ganhar com os cortes uma poderosa desculpa para mascarar a incompetência: não
há dinheiro.
Assim, a Nova República vai morrer e nascerá a Novíssima República, como aqueles antigos trens italianos, o rápido, o rapidíssimo, que nunca chegavam na hora. Será difícil achar a luz no fim do túnel se não decidirmos, pelo menos, em que direção procurá-la. O Brasil não precisa apenas de um ajuste fiscal, mas de rever todo o modelo que nos jogou no buraco".
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