É inédito o atual protagonismo do Poder Judiciário em cenário de crises
políticas no Brasil. Ao expor, de forma drástica, os meandros obscuros do
sistema político brasileiro, o juiz Sergio Moro implodiu, de forma dramática, a
plataforma em que se assentava a governabilidade do País.
Até a eclosão do escândalo do mensalão, a roleta-russa da persecução
penal da corrupção política no Brasil atingia, basicamente, parlamentares e
prefeitos mal-aventurados ou menos precavidos, digamos, as presas mais lentas.
Essa roleta-russa atingiu o governo central, com a famosa Ação Penal
470. Sergio Moro participou como coadjuvante do julgamento. Estava por trás dos
votos da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal. Não é pura coincidência que
a partir de março de 2014 Moro viesse a se estabelecer como juiz natural da
Lava Jato. A partir daí, ainda que por subversão de regras de Direito Penal e
de Direito Processual Penal, para o bem e para o mal, a persecução penal da
corrupção política deixou de configurar roleta-russa.
A chamada judicialização da política é uma patologia institucional que
decorre do constitucionalismo. A partir da Constituição americana de 1787 se
estabeleceu nos EUA um sistema judiciário com aptidão não apenas para solucionar
conflitos casuísticos entre os cidadãos ou entre estes e o Estado, mas também
como contrapeso ao governo e ao Parlamento.
O Poder Judiciário americano, encabeçado pela Suprema Corte, emergiu
factualmente como guardião último dos direitos fundamentais dos cidadãos a
partir do julgamento do famoso caso Marbury versus Madison, em
1803.
A Europa não recepcionou a inovação institucional americana até o
descalabro da 1.ª Guerra Mundial. Pressionada pela ameaça de revolução
comunista que dois anos antes derrubara o governo do outro lado da fronteira,
na Rússia, a Alemanha promulgou em 1919 a Constituição de Weimar, que inaugurou
um governo de compromisso entre capitalismo e socialismo.
Esse meio-termo entre livre mercado e intervencionismo estatal, que ao
ser reproduzido em outros países da região selou a morte do liberalismo puro na
Europa, articulou-se na doutrina da função social da propriedade. Diante da
ameaça comunista, os liberais foram forçados a admitir a relativa
universalização da propriedade privada por meio da adjudicação dos direitos
sociais à cidadania.
As cortes constitucionais de controle de constitucionalidade concentrada
inventadas por Kelsen (1881-1973) atenderam simultaneamente aos interesses da
direita, que temia excessos redistributivistas dos parlamentos com a abrupta
democratização da política que resultaria do alargamento do sufrágio, e aos
interesses da esquerda, que acreditava que sem controle de constitucionalidade
os novos direitos não sairiam do papel.
Após o hiato do período de exceção nazista e a derrota na 2.ª Guerra
Mundial, a Alemanha Ocidental, com a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, em
1949, retomou de forma muito mais decisiva o processo de institucionalização do
controle judicial da política deflagrado em Weimar.
O momento épico, nesse estágio, foi o julgamento do Caso Lüth no
Tribunal Constitucional Alemão, em 15/1/1958. Ao afastar regras do Código Civil
para dar passagem à liberdade de expressão, pela ponderação entre princípios
constitucionais, a Corte abriu caminho para o empoderamento do Judiciário, que
passou a cassar leis emanadas do Parlamento, até mesmo sem excluí-las
expressamente do ordenamento jurídico, e isso por meio de interpretação
ampliativa da vigência empírica dos direitos fundamentais.
A judicialização da política é uma subversão do legítimo controle
judicial da política. É uma transferência para o Poder Judiciário de parte da
competência decisória na formulação de políticas públicas que, por imperativos
democráticos, a Constituição atribui ao Parlamento.
Um ingrediente fundamental ao controle constitucional da política é o
respeito à dignidade das leis, canal privilegiado da vontade geral.
No caso do Brasil, é comum a cínica distorção de conceitos inerentes à
democracia e ao Direito para acobertar sob uma superestrutura republicana uma
odiosa infraestrutura monárquica. O elemento nuclear da democracia é a lei,
cuja própria lógica interna abstratizante impõe a proscrição do privilégio.
Aqui, no Brasil, ainda ignoramos o que vem a ser esse enigma, a lei, que
faz do bem comum o critério fundamental de legitimação da liberdade e do
interesse individual. Na judicialização da política, o magistrado abandona o posto de guardião
constitucional da legalidade, como se pudesse existir Constituição sem lei.
As chamadas cautelares, decisões judiciais que contornam a essência do
devido processo legal – cláusula constitucional que remonta ao menos à Magna
Carta de 1215 –, escancararam as portas o ativismo judicial no Brasil. Essas
decisões cautelares, importadas da Itália, assim como as famigeradas medidas
provisórias, podem ser adotadas por imperativo de ordem pública ou a fim de
assegurar a utilidade do processo judicial.
Também podem ser manejadas para
impedir a preclusão de direitos efêmeros. Utilizadas com moderação poderiam
levar o Brasil à vanguarda da História. O abuso de cautelares arremessa o País
de volta à Idade Média, em sua fase mais sombria.
O pré-requisito essencial tanto ao capitalismo, como percebeu Hegel,
quanto à democracia é a honestidade. É a escassez dessa virtude dentro e fora
do sistema político a verdadeira pedra angular da crise brasileira. A
honestidade se manifesta na atitude de quem se conduz em conformidade com a lei
não por medo de sanção, mas por respeito abnegado aos consensos públicos nela
substanciados. O pressuposto do controle equilibrado da política pelo Poder
Judiciário é a honestidade dos juízes. A judicialização da política é o outro
lado dessa moeda.
*Edvaldo Fernandes é advogado de carreira do Senado Federal e é
professor de Direito no Centro Universitário de Brasília
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