Um jovem matou o avô para herdar seus bens. Seu nome estava escrito no
testamento do avô. Que fazer, se nenhuma lei proíbe a transmissão da herança,
em casos como esse? Em 1889 um tribunal de Nova York precisou responder a essa
questão. Se a lei fosse interpretada literalmente, admitiu a corte, seria
preciso entregar os bens ao assassino.
Mas a decisão do caso, conhecido como
Riggs v. Palmer, foi outra. Segundo a sentença, “todas as leis, assim como
todos os contratos, têm de ser controlados em sua operação e em seus efeitos
por máximas gerais e fundamentais do direito comum”. Em seguida: “A ninguém
será permitido lucrar com a própria fraude, tirar vantagem de seu malfeito,
reclamar direito com base na própria iniquidade ou adquirir propriedade por seu
crime”. Ronald Dworkin, um dos grandes nomes contemporâneos da Filosofia do
Direito, cita esse caso num dos ensaios incluídos no livro Taking Rights
Seriously, de 1976, num esforço para esclarecer a diferença entre regra e
princípio.
As noções de regras primárias e secundárias, estabelecidas pelo
britânico Herbert L. A. Hart, permitiam incluir num amplo conceito de lei tanto
a norma penal (caso mais óbvio da velha concepção de lei como comando) quanto a
norma de procedimento (definidora, por exemplo, das condições de validade de um
testamento ou mesmo do ritual e do alcance da função legislativa). Nem toda lei
corresponde a comando, em sentido próprio, ou estabelece penas para certos
comportamentos. A própria norma de reconhecimento (uma regra secundária), vinculada
ao conceito de validade, escapa da velha e venerada noção positivista da lei
como comando emitido por um ente soberano dotado de poder repressor.
Dworkin reconhece a importância dos conceitos de regra primária e
secundária e sua utilidade para o esclarecimento da noção de lei. Mas o avanço
conseguido com a introdução dessas noções, segundo ele, foi insuficiente. É
preciso, argumentou, mais que isso para dar conta do significado e da operação
do sistema legal. Esse algo mais, a ideia de princípio, é essencial para
entender a decisão do caso Riggs v. Palmer e de outros também complexos.
Dworkin vai além e defende a consideração do princípio como parte do sistema de
leis.
Passando ao problema brasileiro: qual teria sido o efeito se o princípio
adotado no caso do neto assassino fosse aplicado, preliminarmente, ao processo
de impedimento da presidente Dilma Rousseff? Uma limitação importante foi
aceita logo no começo das discussões. Para evitar uma provável contestação na
Justiça o relator do processo na comissão especial, deputado Jovair Arantes,
limitou o debate aos atos cometidos no segundo mandato, a partir, portanto, de
1.º de janeiro de 2015. Na prática, ele aceitou uma interpretação quase literal
– mesmo este detalhe é discutível – do parágrafo 4.º do artigo 86 da
Constituição: “O presidente da República, na vigência do seu mandato, não pode
ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
“Mandato”, nesse caso, tem sido entendido como o atual.
Admitido esse
ponto, livra-se o presidente, ou a presidente, em caso de reeleição, de
responder por crimes de responsabilidade cometidos no período anterior. Os
defensores da presidente Dilma Rousseff têm dado muita importância a esse ponto
e isso é compreensível. Essa interpretação é muito favorável à acusada, embora
as pedaladas de 2014 tenham obviamente continuado em 2015. Afinal, a liquidação
dos desembolsos devidos a instituições federais só se completou no fim do ano
passado.
As consequências daquela interpretação vão muito além, no entanto, do
atual processo de impedimento. Se nenhum presidente reeleito deve responder
pelos desmandos cometidos no mandato anterior, a norma constitucional passa a
garantir um prêmio pelo crime – exatamente como teria ocorrido, no caso Riggs
v. Palmer, se o tribunal houvesse autorizado a entrega da herança ao neto
assassino. No caso dos crimes de responsabilidade, o prêmio dependeria do
sucesso da campanha, isto é, da reeleição do governante. Vitorioso, o
presidente reeleito ficaria livre de acusações e, mais que isso, colheria sem
maiores preocupações os benefícios de suas lambanças.
Mantida essa interpretação, todos os presidentes com razoável chance de
reeleição serão estimulados a violar a lei para continuar no posto. A
resistência ao estímulo dependerá de suas qualidades morais e, além disso, de
seu controle sobre as iniciativas de assessores e companheiros mais dispostos a
recorrer a quaisquer meios para garantir a vitória. A prevalência dessa
interpretação, neste caso, será um desserviço à decência política e à
democracia, pouco importando, quanto a esse ponto, o resultado do atual
processo.
Ao criticar a interpretação favorável ao crime, algumas pessoas têm
chamado a atenção para um problema de datas. A Constituição foi promulgada em
outubro de 1988. A reeleição só foi instituída alguns anos mais tarde. Segundo
o argumento, seria preciso levar em conta esse detalhe ao interpretar o texto
constitucional. É um ponto interessante, mas por que desprezar a questão de
princípio? O estímulo ao crime estaria entre as intenções do constituinte? Quem
sustentaria uma resposta positiva? Quanto ao estímulo, é inegável, se for
mantida aquela interpretação: cometa o crime, garanta sua reeleição e seja
feliz.
Último ponto: mesmo a ideia de uma interpretação literal é discutível.
Não há por que entender os atos cometidos pelo presidente em mandato anterior
como “estranhos ao exercício de suas funções”, se tiverem sido praticados como
atos de governo. Todas as pedaladas, assim como outras lambanças fiscais, foram
cometidas no exercício das funções presidenciais. Quem, afinal, autorizou as
decisões mais discutíveis da equipe econômica e apoiou a implantação da famigerada
contabilidade criativa?
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