Contrário ao impeachment, o ex-ministro dos
governos Lula e Dilma Roberto Mangabeira Unger, 69, afirma que a corrupção é um
problema sério, porém localizado e que não deveria ser usada para desviar o
foco dos desafios reais do país.
Apesar de defender a continuidade do atual mandato
presidencial, o filósofo, que em setembro deixou a extinta Secretaria de Assuntos
Estratégicos, diz que os erros cometidos por Dilma são graves e numerosos. Ele
disse que a política educacional não se tornou prioritária e criticou a
dependência econômica das commodities e o loteamento dos ministérios –práticas
estas que, segundo ele, unem os governos do PT e o PSDB.
De volta à Universidade Harvard, onde ministra
quatro cursos neste semestre, Mangabeira Unger defende uma agenda que priorize
a flexibilização do Orçamento, a produção, uma ampla reforma educacional e a
reinvenção do federalismo. Em novembro, ele trocou o PMDB pelo PDT e agora
trabalha pela candidatura de Ciro Gomes.
A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha em
seu escritório, na faculdade de direito de Harvard:
*
Impeachment
Não, não e não. Práticas fiscais usadas por todos
os presidentes recentes não podem servir para derrubar presidente. Qualificação
progressiva e prospectiva das práticas fiscais, sim. Utilização casuística
dessa qualificação para mudar o poder, não. Não há qualquer indício tampouco de
que a presidente tenha tentado obstruir a Justiça.
Conheço Dilma Rousseff há mais de 30 anos. Como
todos nós, ela é cheia de defeitos, mas é uma pessoa íntegra e ilibada. Desde
Prudente de Morais (1894-1898), não vemos tanta severidade moral na pessoa do
chefe de Estado.
Eu espero que o impedimento seja derrotado na
Câmara dos Deputados e, se não for derrotado na Câmara, derrotado no Senado.
Renúncia
A renúncia é muito menos danosa do que o
impedimento, porque não significaria por si só uma perversão constitucional.
Mas não é a solução melhor. O melhor para o país, e eu digo como crítico severo
dos erros do governo Dilma, é que a presidente seja resguardada no exercício do
seu mandato, mas que, em seguida, reoriente radicalmente o seu governo. Que se
supere a si mesma. Que faça uma autocrítica profunda. Que chame os melhores.
Corrupção localizada
A tentativa de impedimento nasce de um processo e
de um contexto que ameaçam a democracia brasileira. O ponto de partida é a
preocupação com a corrupção no Brasil. A corrupção é um problema nacional sério,
porém localizado.
A sua causa principal está na relação entre os
políticos e as empresas que financiam as campanhas eleitorais. É um problema
solucionável pela mudança das regras de financiamento da política.
O Brasil é, de longe, o menos corrupto dos grandes
países emergentes. Embora a corrupção tanto nos aborreça, é nada em comparação
com o que existe, por exemplo, na China, na Rússia ou na Índia. E não pode
servir para nos desviar do enfrentamento de nossos problemas reais.
Onda contra Dilma
Criou-se uma onda no Brasil. Embrulhamos o ódio e a
frustração no manto do moralismo. A onda passará e deixará gosto amargo na boca
da nação. Não há atalhos para construir o Brasil. A polícia, os procuradores e
a grande mídia se associaram para construir essa onda e conseguiram
sensibilizar a imprensa internacional. A onda utilizou o instituto perigoso das
prisões preventivas, num verdadeiro assalto às liberdades públicas no país.
Uma parte da elite jurídica e judicial abdicou de
sua responsabilidade de por freio às paixões do momento. Temos de enfrentar a
corrupção, sim, mas não a custo de fragilizar a democracia brasileira ou de
eximir de enfrentar os verdadeiros problemas nacionais.
Imprensa e a crise
A imprensa entrou na onda [do impeachment]. Com
isso, também abdicou a sua responsabilidade. A responsabilidade essencial da
imprensa, numa democracia, é aprofundar o entendimento da realidade, ampliando
a imaginação do possível. Não do possível remoto, mas do possível adjacente.
A imprensa se deixou contaminar pelas paixões da
onda. Isso nos deve lembrar da necessidade de reconstruir também o contexto
institucional da própria mídia. Desfazer os oligopólios da mídia no Brasil e
fomentar a multiplicação de formas de iniciativa e de propriedade nos meios de
comunicação. Nada de regulação da imprensa, nada de monitoramento. É o
contrário, radicalizar a diversidade.
Paralelo com os EUA
Alguns compararam a situação com o impeachment do
presidente Richard Nixon (1969-74). Se fizermos uma comparação com a
experiência americana, a mais pertinente é com a tentativa de impedir o
presidente Andrew Johnson, em 1868, pouco após o fim da Guerra Civil.
Ele era teimoso e impopular e tentou reverter
algumas das conquistas da Guerra Civil no Sul. Houve uma tentativa de
impedimento. O impedimento acabou sendo derrotado por um único voto no
julgamento do Senado americano. Inclusive pelos votos dos adversários políticos
de Johnson.
Embora o presidente Johnson continue a ser
considerado um péssimo presidente, até hoje a derrota de seu impedimento é
comemorada como um marco na evolução constitucional do país. Os americanos
compreenderam que a tarefa do processo do impeachment não é salvar o país ou os
Poderes dos seus erros políticos e converter impopularidade em mudança de
governo.
Erros da presidente
Ao condenar a tentativa de impedimento nestas
circunstâncias, afirmo ao mesmo tempo a importância de registrar graves e
numerosos erros de seu governo. A fonte maior de todos esses erros é não haver
reconhecido a necessidade de mudar o nosso caminho nacional.
Não me conformo com o abandono da suposta
prioridade do governo: a qualificação do ensino público, a pretexto da falta de
dinheiro e da necessidade de tratar, dia e noite, da cooptação dos políticos.
Exemplifica, de maneira candente, a observação de André Gide de que o erro mais
comum em política é confundir o urgente com importante.
Nós temos tido, pelo menos desde os governos dos
mandatos de FHC, o mesmo projeto no poder, liderado primeiro pelo PSDB e depois
pelo PT. E é um projeto hoje exaurido. Os seus traços são os seguintes: na
política econômica, a dependência das commodities, dos recursos naturais como o
motor do nosso crescimento. E a tentativa de democratizar a economia do lado da
demanda sem uma democratização correspondente do lado da oferta e da produção.
Os interesses do trabalho e da produção foram
subordinados aos interesses do rentismo financeiro. E as commodities pagaram a
conta. Estes governos todos aceitaram o nível muito baixo de poupança nacional
e de consequente dependência de poupança externa.
A prática política que acompanha essa persistência
no rumo errado foi a prática de dividir o governo em duas partes: entre o
círculo íntimo, o presidente cercado pelos seus amigos e tecnocratas
confiáveis, e o resto do governo, usado para saciar os apetites dos partidos
políticos nesse nosso monstruoso presidencialismo de coalizão, que é a
combinação dos piores defeitos do presidencialismo americano clássico copiado
no Brasil e do regime parlamentar europeu.
Mudança de rumo
Entendo que a alternativa nacional a ser
construída, se possível, no resto do mandato da atual presidente e de qualquer
forma a partir da sucessão presidencial passa por quatro grandes eixos: o
primeiro eixo é a reorganização das finanças públicas como preliminar de uma
nova estratégia nacional de desenvolvimento. Não podemos reorganizar as
finanças públicas mexendo apenas nos 10% de orçamento de gasto discricionário.
Temos de enfrentar os 90%, que são gasto compulsório. Inclusive as vinculações
constitucionais.
Mas o país só aceitará este sacrifício se vier no
bojo de um projeto de democratização das oportunidades econômicas e das
capacitações educacionais. Não pode ser uma iniciativa tecnocrática. Tem de ser
uma condição antecedente de uma mudança de rumo no interesse da maioria.
Portanto, que sirva aos interesses da produção e do trabalho e que permita em
seguida começar a aprofundar a democracia brasileira.
O segundo eixo é organizar no nosso país um
produtivismo includente. Fazer aquilo que o modelo vigente até agora não fez,
democratizar a economia do lado da produção, e não apenas do lado da demanda e
do consumo.
O terceiro eixo é uma revolução na qualidade da
educação pública. Novamente, começa em dois conjuntos de ações que não custam
dinheiro, custam ideias e inovações institucionais. Um conjunto é a organização
da cooperação federativa em educação, a maneira do governo federal trabalhar
com Estados e municípios. Não podemos permitir que a qualidade da educação que
um jovem brasileiro recebe dependa do acaso do lugar onde ele nasce.
O segundo conjunto de ações na revolução
educacional é o currículo nacional, que determina aquilo que cada jovem
brasileiro tem o direito de aprender. Uma nova educação capacitadora e
analítica, que substitua de vez o enciclopedismo raso e passivo que sempre
predominou entre nós.
O quarto eixo é a reinvenção do nosso federalismo.
Uma estratégia nacional, como esta que estou propondo, só se efetiva quando
toca o chão da realidade nas grandes regiões do país. Uma nova política
regional focada em vir ao encontro das vanguardas já emergentes em cada região
do país para lhes dar o equipamento econômico e educacional necessário para
construir novas vantagens comparativas. Uma política regional que, em vez de
ser formulada em Brasília e imposta a partir do centro, seja construída pelas
próprias regiões e microrregiões, com apoio do governo central. Já está
acontecendo na notável auto-organização do Centro-Oeste brasileiro, que passou
a se chamar Brasil Central. O Brasil não está esperando ser salvo, está se
levantando na escuridão por sua própria conta.
Agora, esses quatro eixos precisam ser
complementados pela reconstrução do Estado e da política, com uma cautela: é
comum, entre a elite reformadora do Brasil, imaginar que a reforma do Estado e
da política sejam a mãe de todas as reformas. Uma condição anterior à
reorientação do rumo. A verdade é oposta. Nenhum país muda a sua política e o
seu Estado para só depois decidir o que fazer com o Estado e a política
reformada. A reforma do Estado e da política só ocorre de fato no meio do
caminho de uma luta para reorientar o rumo social e econômico e assim terá de
ser entre nós.
Do PMDB ao PDT
Sou fundador do PMDB e, mais do que isso, o autor
do manifesto de fundação do partido. Concebi o PMDB como um instrumento
político de uma grande coalizão majoritária a favor da predominância dos
interesses do trabalho e da produção. E o PMDB tem um recurso precioso, a sua
incomparável base municipal. Mas os atos recentes, culminando no lançamento do
documento "Uma Ponte para o Futuro", demonstraram o fechamento dos
grupos que hoje controlam o partido à construção de uma alternativa como a que
proponho.
Saí do PMDB e voltei ao meu partido histórico, o
PDT. E lá vou trabalhar para apoiar a candidatura de Ciro Gomes, que vejo como
o melhor instrumento na sucessão presidencial da alternativa que defendo. Ele
demonstra a necessária capacidade de enfrentamento, tem clareza intelectual, e
esse casamento é daquilo que precisamos hoje na liderança do país.
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