A ética dos sem-noção (Merval Pereira)
Outro
dia fiz um comentário no J10 da Globonews que merece aprofundamento, a respeito
da sem-cerimônia com que a ex-ministra do Gabinete Civil Erenice Guerra
transita nos bastidores em Brasília, mesmo depois de ter sido demitida do seu
cargo devido a acusações de tráfico de influência em favor de seu filho.
Além do fato corriqueiro de que Erenice só dispõe desse poder todo por sua
ligação evidente com a hoje presidente Dilma – que se diz inatacável, mas não
move uma palha para impedir que sua amiga continue traficando influência em
Brasília -, é preciso discutir a noção de ética desses lobistas e das
autoridades envolvidas na série de escândalos que estão sendo desvendados.
Golpistas querem confundir o lobby com o pagamento de propinas.
Erenice Guerra está depondo no processo de compra de medidas provisórias,
e admitiu à Polícia Federal que atuou em conjunto com o escritório de advocacia
de José Ricardo da Silva, preso na Operação Zelotes, para solucionar uma grande
dívida da empresa chinesa Huawei, que seria decidida justamente pelo Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), onde José Ricardo era membro
efetivo, ligado ao Ministério da Fazenda.
Questionada sobre o conflito de interesses claro que havia em um conselheiro de
um órgão governamental advogar contra o próprio governo, candidamente Erenice
disse que perguntou a José Ricardo sobre isso, e ele lhe garantiu que não havia
nada na lei que o impedisse de advogar, desde que o caso não estivesse sendo
julgado por sua turma.
Me insurgi contra essa “ingenuidade” da ex-ministra, argumentando que mesmo que
tudo o que não é proibido em lei seja permitido, havia uma questão de ética
pública a impedir esse procedimento. Mas a ministra Carmem Lucia, no exercício
da presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), me chamou a atenção para o
fato de que essa máxima vale para a pessoa física, mas não para o servidor
público. Para este, o que a lei não permite, é proibido.
Há o entendimento no Direito de que o Princípio da Legalidade, cláusula pétrea
de nossa Constituição, é uma garantia de a pessoa praticar atos, desde que a
lei não proíba. Mas na Administração Pública ele tem sentido mais amplo, pois
não pode o Administrador Público fazer algo que a lei não permita expressamente.
Não bastasse esse critério, que não é passível de interpretação e baseia o
Código de Ética do Servidor Público que tem um Conselho ligado à Presidência da
República justamente para impedir que a ética pública seja desrespeitada, há o
Estatuto da Advocacia que, nos artigos 27 e 28, da lei 8.096, de 4 de julho de
1994, trata da incompatibilidades e impedimentos do advogado.
“Art. 27. A incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a
proibição parcial do exercício da advocacia”.
“Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com
as seguintes atividades: II – membros do órgão do Poder Judiciário, do
Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados
especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos que exerçam
função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública
direta e indireta”.
Mais claro impossível. O Carf é um órgão colegiado do Ministério da Fazenda,
que tem por missão julgar recursos fiscais.
Lembrei-me também de uma palestra do historiador Boris Fausto na Academia
Brasileira de Letras onde ele comentou as questões éticas de nossa atualidade
política. Fausto se recusou a considerar que os políticos atuais sejam piores
que seus antecessores históricos, preferindo atribuir a decadência que estamos
vivenciando na questão ética a circunstâncias históricas do desenvolvimento do
país, como o crescimento avassalador do capitalismo de Estado, fazendo surgir
uma nova classe dirigente - identificada originalmente pelo sociólogo Francisco
Oliveira - que mistura o poder sindicalista emergente, dominando os fundos de
pensão das estatais, e as megaempresas multinacionais.
E a consequente possibilidade de ganhar muito dinheiro também com a
prevalência, a exemplo do que ocorre no mundo globalizado, do sistema
financeiro. Boris Fausto chamou a atenção para a naturalização dos desvios
éticos, que são explicados ou com desculpas do tipo "sempre foi
assim" ou com versões muitas vezes fantasiosas, mas que acabam resolvendo
a questão, por mais absurdas que possam parecer.
Com todos os casos que estão sendo revelados pela Operação Lava-Jato e pela
Zelotes, Boris Fausto não podia ter definido melhor nossa situação. A partir de
agora, essa distinção entre o público e o privado, a pessoa física e o servidor
público, vai ser centro de nossa vida pública, e os homens públicos serão
chamados a se definir.
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