![]() |
Sobral Pinto |
Os
mentores do manifesto dos advogados a favor da bandidagem do Petrolão deveriam
ter promovido a primeiro signatário, in
memoriam, o mestre Márcio Thomaz Bastos, morto em novembro de 2014.
Todos sempre foram discípulos do jurista que transformou o gabinete de ministro
da Justiça em fábrica de truques concebidos para eternizar a impunidade dos
quadrilheiros do Mensalão. Todos são devotos do criminalista que, desde que o
freguês topasse pagar os honorários cobrados em dólares por hora trabalhada,
enxergava filhos extremosos até em parricidas juramentados.
Coerentemente,
o manifesto dos bacharéis, na forma e no conteúdo, é uma sequência de exumações
da fórmula aperfeiçoada por Márcio para defender o indefensável. À falta de
munição jurídica, seu tresoitão retórico alvejava a verdade com tapeações,
falácias e chicanas. Em artigos, entrevistas ou discurseiras, ele primeiro
descrevia o calvário imposto a outro cidadão sem culpas por policiais
perversos, promotores desalmados e juízes sem coração. Depois, fazia o diabo
para absolver culpados e condenar à execração perpétua os defensores da lei.
Foi o que fizeram os parteiros do manifesto abjeto.
Os pupilos hoje
liderados por um codinome famoso ─ Kakay ─ certamente guardam cópias do texto
do mestre publicado na Folha em junho de 2012. “Serei eu o juiz do
meu cliente?”, perguntou Márcio no título do artigo que clamava pela imediata
libertação do cliente Carlinhos Cachoeira (” Carlos Augusto Ramos, chamado de
Cachoeira”, corrigiu o autor). “Não o conhecia, embora tivesse ouvido falar
dele”, explicou. Ouviu o suficiente para cobrar R$15 milhões pela missão de
garantir que o superbandido da vez envelhecesse em liberdade.
A
pergunta do título foi reiterada no quinto parágrafo: “Serei eu o juiz do meu
cliente?” Resposta: “Por princípio, creio que não. Sou advogado constituído num
processo criminal. Como tantos, procuro defender com lealdade e vigor quem
confiou a mim tal responsabilidade”. Conversa fiada, ensinara já em outubro de
1944 o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto, num trecho da carta endereçada
ao amigo Augusto Frederico Schmidt e reproduzida pela coluna. Confira:
“O primeiro e mais fundamental dever do
advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar.
Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela
é realmente defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me
convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua
disposição”.
“Não
há exagero na velha máxima: o acusado é sempre um oprimido”, derramou-se Márcio
poucas linhas depois. “Ao zelar pela independência da defesa técnica, cumprimos
não só um dever de consciência, mas princípios que garantem a dignidade do ser
humano no processo. Assim nos mantemos fiéis aos valores que, ao longo da vida,
professamos defender. Cremos ser a melhor maneira de servir ao povo brasileiro
e à Constituição livre e democrática de nosso país”.
Com
quase 70 anos de antecedência, sem imaginar como seria o Brasil da segunda
década do século seguinte, Sobral Pinto desmoralizou esse blá-blá-blá de porta
de delegacia com um parágrafo que coloca em frangalhos também a choradeira dos
marcistas voluntariamente reduzidos a carpideiras de corruptos confessos. A
continuação da aula ministrada por Sobral pulveriza a vigarice:
“A advocacia não se destina à defesa de
quaisquer interesses. Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um
advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma
causa. O advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa
que se dispõe a comparecer à Justiça. O advogado é, necessariamente, uma
consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça,
incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não
discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão”.
“A pródiga
história brasileira dos abusos de poder jamais conheceu publicidade tão
opressiva”, fantasiou o artigo na Folha.
“Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de escutas confidenciais.
(…) Estranhamente, a violação de sigilo não causou indignação.
(…) Trocou-se o valor constitucional da presunção de inocência pela
intolerância do apedrejamento moral. Dia após dia, apareceram diálogos
descontextualizados, compondo um quadro que lançou Carlos Augusto na fogueira
do ódio generalizado”.
Muitos momentos do
manifesto parecem psicografados por Márcio. Onde o mestre viu fogueiras do
ódio, os discípulos enxergaram uma Inquisição à brasileira. Como o autor do
artigo da Folha, os redatores
do documento se proclamam grávidos de indignação com “o menoscabo à presunção de
inocência (…), o vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a
sonegação de documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e
a violação às prerrogativas da advocacia.
Sempre
que Márcio Thomaz Bastos triunfava num tribunal, a Justiça sofria mais um
desmaio, a verdade morria outra vez, gente com culpa no cartório escapava da
cadeia, crescia a multidão de brasileiros convencidos de que aqui o crime
compensa e batia a sensação de que lutar pela aplicação rigorosa das normas
legais é a luta mais vã. A Lava Jato vem mostrando ao país, quase
diariamente, que ninguém mais deve imaginar-se acima da lei.
Neste
começo de 2016, todo gatuno corre o risco de descobrir como é a vida na cadeia.
O juiz Sérgio Moro, a força-tarefa de procuradores e os policiais federais
engajados na operação desafiaram a arrogância dos poderosos inimputáveis ─ e
venceram. O balanço da Lava Jato divulgado em dezembro atesta que, embora a
ofensiva contra os corruptos da casa-grande esteja longe do fim, o Brasil
mudou. E mudou para sempre.
Todo
réu, insista-se, tem direito a um advogado de defesa. Mas doutor nenhum tem o
direito de mentir para livrar o acusado que contratou seus serviços de ser
punido por crimes que comprovadamente cometeu. O advogado é o juiz inicial da
causa. Não pode agir como comparsa de cliente bandido.