Publicado em 13/07/2018 por Valor Online
Bolsonaro na disputa pela estética da quebrada
No fim do ano passado, Esther
Solano entrou numa escola estadual em São Miguel Paulista, no extremo leste de
São Paulo, com um "pen drive" nas mãos e uma ideia na cabeça. Queria
entender as razões pelas quais adolescentes curtem e compartilham vídeos em que
partidários do deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) zoam de suas declarações
polêmicas.
Passou o vídeo em duas turmas
diferentes, uma de 20 alunos, de 14 a 16 anos, do primeiro ano do ensino médio,
e outra de 40 jovens de 16 a 18 anos, do terceiro ano.
Não se tratava da obra completa
do deputado, nem dos melhores momentos. Era apenas uma coletânea dos seus
disparates mais conhecidos. Lá estava o bate-boca com Maria do Rosário, em que
o pré-candidato à Presidência chama a deputada do PT do Rio Grande do Sul de
vagabunda, a empurra e diz que não a estuprava porque ela não merecia; a
afirmação de que sua filha, caçula de cinco irmãos, é fruto de uma
"fraquejada"; a resposta à cantora Preta Gil de que seus filhos não
namorariam uma negra porque são bem-educados; e a homenagem ao coronel
torturador Carlos Brilhante Ustra durante a votação do impeachment.
No vídeo, a reprodução das
cenas é seguida por comentários que ridicularizam os interlocutores do deputado
e concluem que ele havia saído por cima de todas as situações. O contraponto é
ilustrado por montagens em que a cabeça de Bolsonaro, sobreposta ao corpo de um
jovem, com óculos escuros, faz algazarra no meio de uma galera, é jogado para
cima e ensaia passos de funk. Sempre sorrindo ou gargalhando.
Em ambas as turmas, a exibição
do vídeo foi acompanhada de risos, assobios e, ao final, aplausos. As poucas
vozes dissonantes que se insurgiam - "Como é que vocês aplaudem isso
aí?" - eram abafadas. Acalmadas as turmas, Esther, uma espanhola de
português escorreito, apesar de meros oito anos no Brasil, convidou os alunos
para uma discussão. Professora da Universidade Federal de São Paulo e estudiosa
dos movimentos da nova direita, Esther se deu conta, naquela sala, que não é o
ódio que move a empatia dos jovens, mas a atitude transgressora que identificam
nos atos do parlamentar.
No artigo resultante da
pesquisa patrocinada pela Fundação Ebert Stiftung, "Crise da Democracia e
Extremismos de Direita", Esther reproduz o que ouviu. Um aluno de 15 anos
justificou seu entusiasmo: "Ele é legal, é um mito, é engraçado, fala o
que pensa e não está nem aí". Outro, da mesma idade, identificou em
Bolsonaro o contraponto desejado: "Ele tem coragem de peitar os caras de
Brasília e dizer o que tem que ser dito. Ele é f...". Um adolescente de 14
anos definiu sua imberbe iniciação política: "O Bolsomito é divertido, o
resto dos políticos não".
Com mais de cinco milhões de
seguidores no Facebook, Bolsonaro zoa, com sucesso, em busca de empatia. Põe
uma braçada na frente de seus adversários, em redes sociais, repetindo a
dianteira irreverente de uma direita que em campanhas como a do ex-prefeito de
São Paulo, João Doria, e do atual do Rio, Marcelo Crivella, ambas em 2016, foi
bem-sucedida.
Sua intenção de votos entre os
jovens chega a ser o dobro daquela que alcança entre os eleitores acima de 55
anos. Somados os eleitores entre 16 e 34 anos, faixa etária mais conectada,
chega-se a um terço do contingente que vai às urnas em outubro. É este o núcleo
duro do eleitorado bolsonarista. Nos vídeos que cultuam o personagem, a
intolerância é pop. É a linguagem universal de tudo que é produzido pela
campanha oficial ou por simpatizantes. Não convém esconder suas polêmicas, mas
exibi-las para reafirmar que otário é o outro.
É mais fácil encontrar um eleitor
do deputado do PSL enrustido em plateias empresariais do que um
"bolsominion" na periferia das grandes cidades brasileiras. Se o
apego à democracia não faz preço no mercado, o apelo às pautas identitárias
confunde os conflitos que elevam os custos do cotidiano da maioria. É nessa
aliança que está a força do candidato do PSL.
Jovens da periferia de São
Paulo que criaram a página Bolsonaro Opressor, hoje seguida por 2 milhões de
pessoas no Facebook, receberam um telefonema do ídolo para agradecer e pedir
licença para que seu conteúdo fosse reproduzido nos sites oficiais de sua
campanha. Num dos vídeos, o youtuber Felipe Neto, com 18 milhões de seguidores,
diz que não vota em político corrupto. Entre Lula e o gorila Malaquias, vota no
gorila. Entre o candidato do PSL e Lula, não tem escolha. Não concorda com tudo
o que ele representa, mas vai de Bolsonaro.
As páginas rechaçam as
alegações de misoginia, homofobia e racismo de Bolsonaro, mas reproduzem, na
estética e no discurso, os preconceitos do candidato. A tarefa é abraçada por
seus filhos, todos profissionais da política. Num vídeo compartilhado pelo
deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), a mulher que o hostilizou no
aeroporto de Congonhas, quando embarcava para Brasília, tem imagens
reproduzidas em estado de embriaguez com um funk ao fundo: "Já vou logo
avisando que não tenho namorado...".
Antes de se por em campanha
para a Presidência, Bolsonaro colecionou entrevistas em que, ao ser indagado
por que tinha tanta birra com gays, devolvia a pergunta: "Tenho não. Até
estou olhando para você". À reprodução da resposta segue-se a vibração do
personagem, um funkeiro com cabeça de Bolsonaro: "Tomou no c... Por que
foi perguntar besteira?"
Noutro trecho, um eleitor
aproxima-se dele com uma pequena jaula e o convida a olhar para dentro, onde
verá a redução da maioridade penal considerada ideal, aquela em que você já
nasce preso. Bolsonaro reage com rispidez: "Vai queimar tua rosquinha onde
tu bem entender, p....". Outra comemoração do Bolsomito é acompanhada pelo
locutor em off: "Valeu, Bolsonaro, por ser tão mito". Curtiu? Deixa o
"like".
Na roda de conversa da escola
na zona leste paulistana, questionados se partilhavam dos valores embutidos no
comportamento de Bolsonaro, todos os adolescentes negaram. Alguns poucos
chegaram a se arrepender de ter aplaudido, mas a maioria negou que o
parlamentar tivesse, de fato, atitudes discriminatórias.
Um estudante de 16 anos sai em
sua defesa: "Ele não tem discurso de ódio. Tá só expondo a opinião dele,
falando a verdade. E quando é um pouco radical, se retrata. Não tem discurso de
ódio porque quer o melhor para todos. Só que a esquerda exagera. Olha o caso da
Maria do Rosário. Ela ofendeu primeiro".
Esther viu se sucederem, um a
um, jovens que se deixavam levar pela performance do Bolsomito. A teatralidade
com que defende seus preconceitos acabaria por fazer dele o porta-voz do
desacato de jovens a valores tradicionais.
Ao contrário dos Estados
Unidos, onde a estética pop do democrata Bernie Sanders chegou a rivalizar com
a de Donald Trump, no Brasil Bolsonaro custa a encontrar um anteparo. Nas
pesquisas de intenção de voto, o eleitor de Lula é ainda mais jovem que o de
Bolsonaro. O ex-presidente petista chegou a ensaiar passos de funk em suas
andanças pré-Curitiba. Sua imagem de presidiário, no entanto, tornou-se muito
mais fartamente explorada do que a de #Lulalivre.
O auge da era petista fez
surgir na quebrada o funk ostentação, hino à bonança da classe C. Foi a trilha
sonora dos "rolezinhos" que marcaram o ingresso dos jovens nos
templos de consumo. A crise fez desses jovens os líderes das estatísticas de
desemprego. Parte dessa cultura pop voltou às suas origens, de violência e
sexo. Outra parte não tem o que ostentar e busca culpados por não terem
permanecido na classe C.
Vão votar pela primeira vez.
Muitos de seus pais foram eleitores de Lula. Hoje, mais empobrecidos, renegam o
voto. Entre os entrevistados de Esther, dentro e fora da escola, o voto no PT é
'coisa de pobre', gente que precisa de governo. Sua ascensão foi barrada pela
corrupção e pela bandidagem.
A ficha dos adolescentes só
começa a cair quando o discurso linha-dura deixa o personagem e é adotado pelo
vizinho de carteira. A página "Bolsonaro Opressor", traz vídeos com
professores estridentes com alunos que se revelam seus eleitores. O discurso
"minha geração lutou muito pela democracia para a de vocês destruir",
surte pouco efeito. Parece com o daqueles que estão no poder e nada fazem por
eles.
Na escola de São Miguel
Paulista, é o debate entre os próprios alunos que gera questionamentos. A
demonstração da empatia com o deputado do PSL acabou por trazer à tona
experiências pessoais que antagonizaram colegas que, até então, zoavam juntos
as vítimas do discurso de seu personagem predileto.
Uma aluna de 15 anos tomou a
palavra para defender a afirmação de Bolsonaro de que "cadeia não é
colônia de férias": "O cara tem de apodrecer na cadeia, pagar com a
mesma moeda. Eu acho que a pessoa devia ficar sofrendo, sim. Hoje, na cadeia,
tem celular, até colchão. Deveria dormir no chão. Ficar preso é para sofrer
mesmo. Cadeia não tem de ter colchão, tem de ter chicote".
Uma colega da mesma idade, que
até então aplaudia o discurso punitivo, passou a reelaborar seus argumentos. A
intolerância, naturalizada por Bolsonaro, só foi capaz de chocá-la quando
verbalizada por alguém que partilha do mesmo tranco cotidiano: "Mas minha
tia está na cadeia. Não quero que ela sofra e acho que ela sofre muito. Ela
cometeu muitos erros, sim, mas é uma pessoa e não merece ser tratada dessa
forma. Tem de punir, mas também tratar como ser humano".
(Publicado no Valor Online, 13-07-2018)
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