Imagine se houvesse
uma pílula que, fornecida a líderes mundiais em uma reunião das Nações Unidas,
tornasse-os extremamente sociais, sem preconceitos, sem racismo, em um arroubo
de amor pelo próximo. Que conflitos pudessem ser resolvidos com uma intervenção
medicamentosa que dirimisse desconfianças e facilitasse a interação. Em um
sonho ainda muito distante, esse seria o resultado de uma pesquisa que
desvendou a ação de um gene que contribui para a intolerância.
A descoberta, liderada pelo neurocientista
brasileiro Alysson Muotri, pesquisador da Universidade da Califórnia em San
Diego, foi possível a partir da análise de pacientes portadores de uma doença
que os torna super sociáveis o tempo todo. É a chamada Síndrome de Williams,
que, grosso modo, funciona de modo oposto ao autismo.
Rara (atinge 1 a cada 10 mil nascimentos), a doença
ocorre quando cerca de 25 genes são deletados do cromossomo 7 durante o
desenvolvimento neural dos bebês. As pessoas com essa condição têm uma feição
bastante característica (nariz pontudo, queixo fino, olhos grandes, boca
larga).
Estão sempre sorrindo, não têm inibição, conversam
com todo mundo, mesmo os estranhos, independentemente de cor, religião, beleza.
Adoram música, são dóceis, ingênuos e carinhosos com quem está sofrendo. E tem
uma linguagem bastante sofisticada. Mas apresentam também baixo rendimento
intelectual e problemas cardíacos.
Muotri, que é especialista em autismo – doença
caracterizada pela pouca sociabilidade e dificuldade de linguagem –, imaginou
que investigando a Síndrome de Williams poderia encontrar alguma pista para
explicar o desenvolvimento do cérebro social humano.
Pessoas com a Síndrome de Williams
estão sempre sorrindo, não têm inibição, conversam com todo mundo, mesmo os
estranhos, independentemente de cor, religião, beleza
Evolução. Ao longo da evolução da nossa espécie, ao mesmo tempo em que foi
interessante desenvolver um comportamento colaborativo e gregário para
sobreviver, também deve ter sido vantajoso limitar essa capacidade social em
uma época em que vivíamos em pequenos grupos. Na luta por fontes restritas de
alimentos, era preciso ser meio desconfiado em relação a outros para proteger
os interesses das suas próprias comunidades.
Para Muotri e companhia, um dos genes que falta aos
pacientes com a Síndrome de Williams (o FZD9) pode ter sido o responsável por
esse comportamento. “Com esse gene criamos o preconceito, o racismo, que em
algum momento foram importantes na nossa interação com outros grupos, nos
manteve seguros, mas que hoje, a meu ver, não é mais necessário.”
Mas a evolução é lenta e vai levar tempo para
naturalmente eliminar essa característica. Tampouco é rápido mudar
culturalmente um comportamento preconceituoso e racista. Daí a ideia de tentar
induzir no corpo o que ocorre quando o FZD9 está em falta.
A pesquisa, publicada na edição desta quinta-feira da revista Nature,
partiu da investigação genética de cinco pacientes com a Síndrome de Williams.
Em quatro deles, havia a deleção típica dos 25 genes (inclusive de uma das duas
cópias do FZD9) e eles apresentavam todas as características físicas e
comportamentais da doença.
O quinto paciente era um pouco diferente – ele não era super social como
os demais. A investigação notou que ele tinha mantido as duas cópias do FZD9,
assim como ocorre com a maioria dos seres humanos. “Isso nos fez concluir que
esse gene contribui para o preconceito ou a intolerância. A natureza fez o
teste para a gente”, disse Muotri. Em outra formulação, definiu o
pesquisador, pode se dizer que o "amor pelo próximo pode
ser causado por um defeito genético".
Mais ou menos na mesma época em que ocorria essa
pesquisa, um outro trabalho do mesmo grupo observou que alguns autistas
apresentam uma duplicação das cópias desse gene, totalizando três cópias, o que
reforçou a conclusão de ele estar relacionado a um comportamento menos social.
Mini-cérebros. A etapa seguinte foi trabalhar com reprogramação celular para
fazer com que células-tronco retiradas do dente dos pacientes voltassem a agir
como células-tronco embrionárias (as chamadas iPS, ou células de pluripotência
induzida) e, com elas, produzir mini-cérebros.
Isso permitiu aos pesquisadores observarem como se
dá o desenvolvimento neural em pacientes com a Síndrome de Williams tradicional
(com todos os 25 genes deletados), naquele que manteve as duas cópias do FZD9,
e no grupo controle (pessoas “normais”, que têm as duas cópias). Depois eles
também compararam com pacientes com autismo (que têm três cópias).
Na falta de uma cópia desse gene no primeiro grupo,
os cientistas notaram que ocorre uma má formação no córtex, levando os
neurônios a ficarem ultra conectados e realizarem um número muito maior de
sinapses que nas pessoas com as duas cópias do gene. É isso que tornaria os
pacientes com Williams super sociáveis. Já nos autistas, os neurônios ficam
menos conectados e há menos sinapses.
Os pesquisadores observaram que o FZD9 atua em uma
via metabólica durante o desenvolvimento neural responsável pelos circuitos
sociais. Muotri defende que talvez seja possível desenvolver algum remédio que
possa manipular essa via para tornar as pessoas mais sociáveis.“É tudo uma
questão de dose. Se ela é baixa, a criança é super social, se é alta, é
autista. Existe uma modulação dessa via que é importante e que talvez possamos
trabalhar no futuro”, afirma.
A dose é importante porque as crianças com Williams
acabam sendo muito ingênuas, não têm filtro e podem ser enganadas ou mesmo
feridas. Há relatos de famílias de meninas que acabaram engravidadas, lembra
Muotri.
“Mas seria interessante usar isso em reuniões de
líderes mundiais, por exemplo. Para que num dado momento eles se enchessem de
empatia. Não é para desligar o tempo todo. Claro que é importante ficar alerta
diante de um estranho, até para se proteger, mas seria interessante manipular
em outros momentos.”
A reportagem
questiona: isso não seria muito artificial? “Seria, mas podemos pensar que
estamos dando uma força para a evolução. Pense no Dalai Lama. Ele medita para
ter empatia. É a mesma coisa, porque ela não vem naturalmente, não é algo que
se sustente por todas as horas do dia. É um exercício.”
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