E agora? O Reino Unido sai ou fica na
União Europeia? Aviso já: não confio em pesquisas. Muito menos inglesas. Basta
recordar as últimas eleições gerais: David Cameron estava morto e enterrado. Na
hora da contagem, Cameron vencia com estrondo.
Não confio em pesquisas inglesas,
repito. Mas espero, de alma e coração, que Londres abandone o bloco. Heresia?
Provavelmente: lemos a cobertura
midiática sobre o plebiscito da próxima quinta-feira e a telenovela é uniforme:
a "pérfida Albion" não quer imigrantes, não quer refugiados –e só
pensa, ó criminosa!, em abandonar o "projeto europeu" que garantiu
meio século de paz na Europa (a presença americana no continente, com seus
mísseis apontados a Moscou, nunca é referida, para não estragar o filme).
Além disso, com a crise da zona do euro
longe da resolução, Londres não deseja contribuir para pacotes de resgate que,
além de ilegais, não têm tido grande sucesso.
Entendo a histeria. Mas, se me permitem
advogar pelo diabo, será que um país supostamente livre e independente tem o
direito de decidir a sua política econômica? Mais ainda: será que um país
soberano pode escolher, democraticamente, a sua política de imigração e
acolhimento?
As perguntas não são retóricas. São
fundamentais para entender os defensores do "Brexit". E um bom
exemplo é o eurodeputado Daniel Hannan, que escreveu o seu "Why Vote
Leave" com uma racionalidade que eu não vejo nos defensores amedrontados
da permanência.
Para Daniel Hannan, o plebiscito
reflete, acima de tudo, o desconforto de uma parte do Reino Unido com a
"supremacia legal" da União Europeia. Devem os países do bloco ser
governados "de facto" por uma Comissão Europeia que ninguém elegeu
–ou esse papel cabe aos parlamentos dos diferentes estados?
Esta pergunta, que pode parecer bizarra
a almas pouco democráticas, é inseparável da própria história inglesa. Em
especial, da sua tradição de liberdades que sempre se fez contra a autoridade
ilimitada do soberano.
Como lembra Daniel Hannan (e bem),
quando o baronato medieval se reuniu em Runnymede, em 1215, para assinar a
Magna Carta, o que estava em causa não era apenas garantir direitos e
privilégios para a nobreza nativa. Era também afirmar que o rei John não estava
acima da "rule of law" em matérias que lidam com a vida, a liberdade e
a propriedade dos "homens livres" do reino.
E se é verdade que o parlamento, nos
séculos seguintes, foi sobretudo um órgão de consulta e ratificação das
decisões reais (como, ironicamente, é hoje o parlamento europeu face à
hiperatividade legislativa dos comissários), a partir do século 17 a fonte da
autoridade legal passou a estar incontestavelmente em Westminster. Essa
autoridade nasceu, convém lembrar, com Revolução Gloriosa de 1688 que não
hesitou em depor a "tirania católica" de James 2º.
Os ingleses que defendem o
"Brexit" nunca se opuseram a um mercado comum. O que eles não
toleram, porque nunca toleraram, é a existência de um poder exterior que
suplanta e marginaliza o papel secular do parlamento.
"Os pais fundadores da União
Europeia", escreve Hannan em observação certeira, "tinham uma
experiência ambígua com a democracia –especialmente com as variantes populista
e plebiscitária que se multiplicaram entre as guerras." E conclui:
"Demasiada democracia estava associada, nas suas mentes, a demagogia e
fascismo".
Escusado será dizer que essa não foi a
experiência inglesa do século 20. A Alemanha e a França deveriam recordar que
foi a plena democracia inglesa que ajudou a derrotar a primeira e a salvar a
segunda.
É também por isso que espero pela saída
do Reino Unido. A utopia federal que a União Europeia persegue é clara, e creio
que irreversível. E essa utopia implica a rendição das soberanias nacionais a
um único poder burocrático, centralizado –e incontrolado.
Fatalmente, esse processo poderá
despertar, como sempre despertou no passado, o exato tipo de nacionalismos
venenosos que os "pais fundadores" procuraram suplantar.
Se isso acontecer, será importante que
a "pérfida Albion" esteja ao longe, na sua ilha. Porque, aqui entre
nós, a Inglaterra sempre foi decisiva para salvar os europeus deles próprios.
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