terça-feira, 17 de junho de 2014

Linguagem e pornografia política

A crua linguagem popular, quando transcrita e publicada, pode violar normas editoriais; pior, ainda, quando os brados soam retumbantes nos ouvidos, trazendo junto ao eco as imagens da ira e de repúdio dos que lançam injúrias aos poderosos do momento, tal qual vem ocorrendo nas ruas e, principalmente, nos grandes estádios brasileiros onde se disputa a copa do mundo. Governistas no Brasil pretendem, com tal pretexto, cultivar agora um gosto refinado pelo qual nunca mantiveram maior apreço. Em palavras mais contundentes, os petistas e seus aliados querem implantar a censura no Brasil.

Reverbera nas profundezas dos cránios os apodos pornográficos com os quais o povo vem brindando as autoridades do país. E isso dói. Dói pela força da verdade que contém. Em reação à vontade popular, os petistas querem, enfim, retirar do cidadão seu direito mais elementar: o de espernear e de dirigir aos governantes as palavras mais duras possíveis, como reação ao habitual comportamento irresponsável, leviano e corrupto observado na última década, desde que Lula ascendeu ao governo da república. 
É, portanto, um direito, sim, do povo, o de protestar, que adquire legitimidade pelo insuportável da situação vivida pela maioria. 

Josemaría Escrivá é um dos santos mais recentes do panteão católico. Em sua obra - Caminhos - no Ponto 850, o príncipe da Igreja, dirigindo-se a um discípulo, aconselha-lhe um curioso, insólito, meio de reação contra aqueles que nos infernizam:

"Que conversas! Que baixeza e que... nojo! E tens de conviver com eles, no escritório, na universidade, no consultório..., no mundo. Se pedes por favor que se calem, ficam caçoando de ti. Se fazes má cara, insistem. Se te vais embora, continuam. A solução é esta: primeiro, pedir a Deus por eles e desagravar; depois..., ir de frente, varonilmente, e empregar O APOSTOLADO DOS PALAVRÕES (grifo meu). Quando te vir, hei de dizer-te ao ouvido um bom repertório".

Não é exclusividade de Josemaría Escrivá tal compreensão dos limites do suportável. Outro santo homem - Thomas Morus, mártir da Igreja, beatificado por Leão XIII, em 1886, e canonizado por Pio XI, em 1935 - questionou Lutero duramente, em sua célebre obra "Responsio ad Lutherum". Além de usar os mais chocantes palavrões disponíveis, repete-os e, ainda, os floreia. A justificativa dada por ele ao emprego da linguagem obscena foi: responder com puras contestações eruditas à baixeza de Lutero, seria conceder-lhe um honra imerecida, motivo que o levou a usar os seguintes termos:

"Enquanto continuardes a dizer essas desavergonhadas mentiras, a outros será PERMITIDO QUE JOGUEM DE VOLTA NA VOSSA BOCA CHEIA DE MERDA (grifo meu, em tradução livre), verdadeiro depósito de toda merda, a sujeira e merda inteira que vossa execrável podridão vomitou, e esvaziar todos os esgotos e privadas na vossa coroa despida da dignidade da coroa sacerdotal, em prejuízo da qual decidistes bancar o palhaço" (Cf. The complete works of St. Thomas More, ed. Jonh M. Headley, vol. V, New Haven: Yale University Press, 1969, pag. 181).

Palavrões, enfim, frequentam de há muito a literatura, a poesia e, até, a teologia, conforme se pode ver.
No Canto XX, Inferno, Dante tripudia sobre os trapaceiros que negociavam cargos públicos, ou roubaram os seus amos, sendo por isso condenados a ficar mergulhados em piche fervente, na quinta vala, sob a severa vigilância de Barbarícia e seus demônios (Zé Dirceu que se cuide; seu futuro será deplorável). A partir de imagem tão asquerosa, o ilustre florentino constrói refinados versos elaborando o que há de mais sórdido:
(...)
"À sestra os dez então fizeram rosto;
Nos dentes cada qual mostra primeiro,
Por mofa a língua ao cabo já disposto;

E ele trompa fazia do traseiro".

A inusitada descrição de Barbarícia (peidorreiro infame), em surpreendente e sublime linguagem  não é repetida em outros momentos das literaturas erótica ou da fescenina exceto, talvez, com Verlaine (vide Para ser caluniado), e certamente nas 1001 Noites. Veja-se o caso de L'art de péter, de Pierre Hurtaut, para quem "peidar seria uma arte que, bem praticada, se tornaria uma arma social", publicado meio milênio após a Comédia, em 1751. Vale destacar que nos tempos de Hurtaut ainda não se conhecia o elevador, local hoje de costumeiros atentados terroristas olfativos.

Ora, se tais licenças linguísticas são permitidas a sofisticados pensadores, por qual razão censuraríamos o comum do povo no seu exercício legítimo de injuriar ou insultar os poderosos, estes sim, pornográficos habituais em suas falas, atitudes e comportamentos?

Estamos testemunhando um fenômeno de massa que, por incrível que pareça, encontrou o tom certo para fazer os mandarins que nos mal governam passar recibo sobre o que ouviram em alto e bom som. A partir de agora Dilma, Lula e companhia entenderão corretamente o profundo sentimento de insatisfação popular que vai se apoderando do país, de norte a sul, de leste a oeste.

A conduta popular seria fruto da razão e fundada em base científica? Claro que não! A virtude não se relaciona com a ciência. Em sua costumeira irreverência, Lacan afirma que não há episteme da areté. As massas, melhor que nós - pessoas que somos eventualmente devotadas a complexos discursos - acertou bem no meio do alvo com seu Hai Kai picaresco, ironia levada ao paroxismo nas ruas e nos templos futebolísticos, redutos da impessoalidade e do anonimato dissolventes, que reduzem os indivíduos à condição de malta.

Gente como Lula, Dilma e os demais que os acompanham não se ofendem quando chamados de ladrões, corruptos ou incompetentes. Acostumados com as sujeiras, e desejosos delas no seu inconsciente, só se sentem atingidos com alusões anais. Aliás, observados bem de perto, o que mais predomina na elite petista que subjuga o Brasil são os traços caracterológicos de submissão e agressão autoritárias, propensão a pensar de acordo com categorias rígidas, inclinação a valorizar aspectos místicos no destino individual etc. A vontade obsessiva de impor uma sistematização aos outros, vistos como resistentes, é peculiar aos possuidores de viés psicótico próprio da fixação na fase anal, ao longo do processo de construção da personalidade.

Um comentário:

Unknown disse...

Volta em altíssimo estilo! Bravo, Machado! Uma pena que em tempos como este a mídia (imprensa, rádio, tv, cinema, etc) sá abra espaço para tocadores de tuba. Vida longa para você, professor. Abraço, Ernane Siqueira.