sexta-feira, 4 de junho de 2010

Budismo e educação

(Autor: Renato Modernell)


"O adágio Ex oriente lux, expressão latina que significa "a luz vem do Oriente", comporta dois significados. O mais imediato diz respeito à luz do Sol: é lá que ela nasce, nos países do "Levante", e depois aos poucos se projeta sobre esta parte do planeta onde vivemos, dissipando a escuridão e embriaguez do sono. O outro significado dessa expressão, conhecida dos antigos romanos, é mais sutil. Está ligado não aos raios solares, mas à sabedoria necessária no percurso da existência humana. Sempre que o mundo ocidental entrou em crise, ou se viu diante de dilemas e incertezas, de algum modo se voltou para o Oriente - em busca de orientação, como a própria palavra já indica.Foi assim com os sábios gregos; com o general macedônio Alexandre; com as caravanas medievais ao tempo de Marco Polo; com os navegadores ibéricos; com artistas europeus do século 19; com o psicólogo suíço Carl Gustav Jung, adepto do I Ching; com o escritor Herman Hesse, cuja ficção está permeada da filosofia oriental; com os Beatles, que foram à Índia e usaram cítaras; e assim também com os expoentes da contracultura, na década de 1960.

O Oriente, como um velho senhor que pouco sai de casa, ou um guru silencioso, sempre esperou que o Ocidente fosse até ele, em busca de verdades milenares que funcionam como faróis em meio ao oceano. O Oriente esperava, não se movia; e daqui partiam os peregrinos, as caravelas, os poetas e os visionários, para trazer especiarias espirituais e pérolas filosóficas buriladas pelo tempo.Traziam e as aplicavam aqui e ali, em pequena escala, numa sociedade dominada pela febre da produção e da velocidade."O pensamento contemporâneo ocidental está viciado pelo excesso de especialização", afirmava três décadas atrás o historiador e professor britânico Arnold Toynbee (1889-1975), classificado pela revista Time como um "sábio internacional" do porte de Albert Einstein e Bertrand Russell. Ele continua: "A imagem que se forma na mente humana de um fragmento da realidade é distorcida se arbitrariamente o separamos de seu ambiente e o estudamos como se fosse um entidade auto-suficiente e não - como de fato acontece - parte inseparável de algo mais abrangente.

Acho também que a análise sociológica contemporânea no Ocidente perde contato com a realidade por analisar os assuntos humanos em cortes transversais irrealistas, instantâneos, divorciados do passado e do futuro, como se a vida fosse uma natureza-morta.Na realidade, a vida é móvel e não pode ser vista como realmente é, a menos que fluindo na corrente do tempo." Era um diagnóstico inquietante do tipo de vida que vivemos. Porém algo fluiu intensamente ao longo desses 30 anos. Pode-se dizer que o Oriente já não está mais lá, onde sempre esteve, lá onde nasce o Sol. O Oriente chega até nós como uma onda de novos hábitos, valores e símbolos que se infiltram no nosso cotidiano assim como os fótons, partículas de luz, penetram na escuridão. Os indícios estão por todos os lugares. O signo do yin-yang, por exemplo, já se tornou para nós tão familiar quanto o logotipo dos grandes fabricantes de automóveis. Técnicas terapêuticas orientais abrem espaços importantes no campo da assistência médica. As culinárias chinesa e japonesa já perderam o seu caráter exótico e se integraram ao dia-a-dia dos habitantes dos grandes centros. Os novos modelos de gestão empresarial incorporam conceitos filosóficos usados há milênios do outro lado da Terra.

Seria irreal pensar nos processos mencionados, e em muitos mais, como simples modismos ou fenômenos isolados. Deveria haver uma concepção do mundo, por trás deles, servindo-lhes de força propulsiva. Aqui surge o budismo. É verdade que, dos seus estimados 360 milhões de praticantes existentes no mundo, pouco mais de 240 mil estão no Brasil, segundo o censo do ano 2000. Porém há claros sinais de expansão: a prática ultrapassa as colônias mais fechadas, as diferentes escolas dialogam entre si e traduzem textos fundamentais para o português. O acontecimento mais importante do século 21 seria a chegada do budismo ao Ocidente. Esta afirmação do mesmo Toynbee parece bem perto da realidade. Nos últimos anos, cientistas ocidentais de vanguarda buscaram estabelecer conexões entre seus métodos investigativos e os mais tradicionais métodos budistas de domínio do mundo sutil. Com base nisso, vemos hoje prestigiosas universidades americanas, como as de Princeton e Stanford, desenvolver estudos avançados nos campos da telepatia e dos sonhos, respectivamente. O velho sábio britânico, portanto, uma vez mais tinha razão. Porém essas são idéias gerais, aplicáveis a um arco de tempo que supera em muito os anos de vida de uma pessoa.

Uma pergunta precisa a ser feita e respondida: o que o budismo tem a oferecer ao Brasil, hoje, como embrião de uma nova vertente educacional? Flexibilidade talvez seja a primeira palavra a ser usada. Bem mais do que as religiões ocidentais, o budismo apresenta-se como uma doutrina plástica, adaptável ao meio e às circunstâncias. Mantém sua essência por meio da maleabilidade externa praticada ao longo de dois milênios e meio, desde o primeiro sermão de Buda no Parque das Gazelas, em Benares. Na China, o budismo fundiu-se com o taoísmo; no Japão, com o xintoísmo; na Índia, com o tantrismo, o cristianismo antigo e depois com diferentes formas de hinduísmo; no Tibete e no Sudeste Asiático, com o xamanismo. Nenhum sistema filosófico fez tantos alongamentos musculares. "O budismo possui grande espírito de tolerância", destaca Ricardo Mário Gonçalves, estudioso da expansão dessa doutrina no Brasil, em reportagem da revista Terra, em agosto de 2003. "É uma religião que absorve e interpreta a realidade local à sua maneira. (...) Aceita facilmente o sincretismo religioso, o que facilita sua adaptação a novas culturas."Essa opinião encontra respaldo em dos maiores escritores do século 20. Jorge Luis Borges (1899-1986) chama a atenção para o fato de que o budismo "nunca recorreu ao ferro ou ao fogo, nunca pensou que o ferro ou o fogo fossem persuasivos.

Quando Asoka, imperador da Índia, tornou-se budista, não tentou impor sua nova religião a ninguém. Um bom budista pode ser luterano, ou metodista, ou presbiteriano, ou calvinista, ou xintoísta, ou taoísta, ou católico, pode ser prosélito do Islã ou da religião judaica, com total liberdade. Em compensação, não é permitido a um cristão, a um judeu, a um muçulmano ser budista." E conclui que "a tolerância do budismo não é uma debilidade, mas faz parte de sua índole mesma."Ora, é justamente esse espírito de conectividade e parceria (para usar uma palavra hoje em moda) que se busca nas mais modernas concepções educacionais, quando se fala em coisas como interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, transdisciplinaridade. Esta escala de conceitos, de abrangência crescente, abre-se se para tradições antigas e novas formas de apreensão da realidade. Se pensamos em cinco séculos de sincretismo religioso, diríamos que o Brasil sempre foi, na essência, uma cultura transdisciplinar, ou pelo menos pluralista, ainda que a face oficial da educação quisesse parecer homogênea e cartesiana. Hoje, isso mudou. O que se busca é superar fronteiras, gerando novos potenciais a partir da diversidade.

Eis aí, portanto, um terreno propício para o budismo, que se baseia na tolerância e na convivência pacífica. A segunda palavra é ética. Aqui caberia lembrar a frase surpreendente de um ativista político russo muito pouco afeito ao universo religioso. "A ética é a estética do futuro", disse Vladimir Ilyich Lenin (1870-1924), fundador do regime soviético. Daí se depreende que nossos atos são muito mais do que ferramentas e processos para se atingir determinado objetivo, mas configuram, por si mesmos, um mapa do nosso universo interior. Uma escultura, digamos. Em outras palavras, não pode haver dissociação entre nossas táticas e nossos valores, sob pena de comprometer nossa trajetória no mundo.Sabemos que o budismo é extremamente ético, a ponto de às vezes, sob certos aspectos, parecer mais um código de posturas do que uma religião, no sentido em que a entendemos no Ocidente - ou seja, cujo foco principal está na vida eterna. Borges: "O budismo, além de ser uma religião, é uma mitologia, uma cosmologia, um sistema metafísico, ou melhor, uma série de sistemas metafísicos".

Na verdade, o budismo é um circuito de saberes, com conexões nem sempre fáceis de interpretar, mas sempre com profundo sentido humanístico. Nisso reside seu fascínio, para as pessoas mais sensíveis, esclarecidas, preocupadas com qualidade de vida e relações saudáveis. Pois bem, essa ética budista - bem perto de uma estética, por seu caráter suave e inspirador - afina-se com a ênfase que se dá hoje, nas melhores escolas, à necessidade de se agir de forma equilibrada, justa e transparente. As pessoas que elaboram rumos e processos na área da educação, em grande parte intelectuais de classe média, tendem a ver com bons olhos essa doutrina ao mesmo tempo simples e sofisticada que vem do Oriente. "O budismo tem preocupações metafísicas com as quais o público intelectualizado se identifica", ressalta Flávio Pierucci, professor de antropologia na USP, ainda na revista Terra."Não oferece nenhum deus que faz as coisas para você, e sim técnicas para você mesmo se salvar, sem esperar pela ajuda externa." É evidente, aqui, o parentesco dessa idéia com conceitos fundamentais do construtivismo, no âmbito da educação, segundo os quais cada indivíduo constrói por si próprio suas ferramentas e caminhos para o conhecimento.

Mesmo dentro do mundo corporativo, ou pelo menos em empresas que diríamos mais arejadas, já se prega hoje uma humanização de métodos e procedimentos. Uma gestão puramente "de resultado" representa uma visão arcaica. Se levarmos em conta que a escola deve não apenas informar, mas formar futuros profissionais, está claro que a ética tende a ocupar espaços cada vez mais importantes.Já não será uma espécie de perfumaria na grade curricular, como o inglês, décadas atrás. A ética deverá se tornar um fator sistêmico na formação dos jovens. Importa não apenas o que se faz - mas como se faz. É certo que o famoso "jeitinho" brasileiro, traço marcante de nossa cultura, pode parecer, à primeira vista, um elemento essencialmente antiético, na medida em que sugere levar vantagem, burlar a regra, avançar o sinal. Porém essa é apenas uma face da moeda. O "jeitinho" é igualmente a pedra angular de um comportamento que valoriza a flexibilidade, a criatividade e o senso de improvisação, fatores decisivos para se atuar no mundo de hoje. Diríamos que o Brasil é um país com uma ética própria, ainda em formação.

Nesse processo, o budismo tem muito a oferecer, sendo, como de fato é, uma rara conjunção de maleabilidade externa e disciplina interna. A imagem de um sorvete de fruta ácida, com uma cobertura doce, quente e cremosa, ilustra o contraponto que está no cerne da nossa cultura - e isto, vale lembrar, não está muito longe do símbolo yin-yang.

Outra palavra a ser lembrada é profundidade. E profundidade é o que faz as coisas menos efêmeras do que são. Como sabemos, o budismo associa o sofrimento humano ao apego àquilo que é transitório. No terreno do conhecimento, portanto, deveríamos ser capazes de mudar nosso quadro de referências conforme mudam as circunstâncias em que vivemos.Isto não significa, no entanto, um caráter leviano ou superficial. Ao contrário: mudar o que precisa ser mudado para deixar respirar aquilo que nunca muda. Ora, numa cultura como a nossa, sob o signo da instabilidade, esse ensinamento só pode ser de grande valia. Modela nosso caráter para enfrentar os altos de baixos da vida, trazendo um pouco da serenidade oriental para este recanto turbulento do Ocidente.A situação em que vivemos deve-se, em grande parte, ao nosso próprio modus operandi, que até pouco tempo atrás teimava em incensar a objetividade. O cérebro esquerdo já não é mais suficiente para se viver no mundo de hoje - é o que ouvimos, cada vez mais, mesmo nos ambientes acadêmicos mais tradicionalistas. Isto equivale a dizer que o raciocínio não pode prescindir da intuição, cuja sede seria o hemisfério direito da nossa cabeça.

"A imaginação é mais importante que o conhecimento", afirmou certa vez Albert Einstein, ele próprio uma prova cabal de que a imagem vem antes da fórmula. A teoria dos hemisférios cerebrais (que deu o Prêmio Nobel de 1981 ao psicobiologista americano Roger Sperry), ao contrapor racionalidade e intuição, mundo denso e mundo sutil, estabelece feliz correspondência com a geografia do nosso planeta. O Ocidente, que antes buscava o Oriente de forma incisiva, agora o recebe em sua própria casa. Ou seja, o fluxo vem de lá, conforme prega o adágio Ex Oriente lux. O que vemos acontecer confirma a idéia de Toynbee de que o budismo -- serenamente revolucionário -- tem um papel modelador a cumprir no século 21, nestas bandas do planeta. Será de grande proveito para os brasileiros do futuro - e por isso merece espaço na nova escola, junto com a maçã de Newton".

(Renato Modernell é escritor, jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP).

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