B) A gênese sociopática do totalitarismo
“Enquanto comportamento e enquanto ideologia política o totalitarismo é um fenômeno moderno. É uma resposta inadaptada e sociopática aos desafios introduzidos pelo ingresso das massas na política em sociedades nas quais, por outro lado, o processo acelerado e radical de mudanças tecnológicas, crescimento econômico e secularização sociocultural produz descontinuidades e crises cíclicas nos valores e nos marcos de referência da ação, gerando, no homem comum, entre as elites e entre os intelectuais, níveis intoleravelmente elevados de incerteza e de percepção de ameaça.
Sob tais condições, um largo número de indivíduos experimenta a erosão, a descontinuidade e a ruptura dos vínculos que os integram aos grupos e às associações primárias e intermediárias, mergulhando na atomização que caracteriza a condição de massas. O crescimento econômico rápido e a urbanização com ou sem industrialização geram expectativas e aspirações. As crises cíclicas de inflação, desemprego ou depressão, que interrompem ou perturbam subitamente esses processos, introduzem frustrações e decepções. Frustrações e decepções ampliam o universo das elites desajustadas e ressentidas, convertendo-as sucessivamente em contra-elites e em elites revolucionárias e colocando diante delas, massas disponíveis para manipulação.
A secularização e a racionalização crescentes destroem os valores e as normas tradicionais de ação mais rapidamente do que conseguem substituí-los por normas e valores modernos, inaugurando um intervalo de vazio normativo ou, literalmente, de anomia.
A universalização do acesso às informações incrementa o sentimento de igualdade que, como observara Tocqueville, os homens assimilam e apreendem mais facilmente do que a difícil arte de associar-se. Instalam-se assim o cenário e os atores dos movimentos totalitários de ruptura, à direita ou à esquerda, da ordem política.
Existem diferentes construtos analíticos que iluminam a direção e as implicações complexas dos processos de expansão tecnológica, de crescimento econômico, de urbanização, de industrialização, de secularização cultural e de modernização sócio-política, dos quais o totalitarismo é uma resposta sociopática. Dentre eles, o mais abrangente e penetrante, do ponto de vista psicossocial, é a teoria, elaborada por Talcott Parsons, das mudanças na natureza e na orientação da ação social e na distribuição de papéis sociais que se seguem à transição das sociedades comunais ou tradicionais às sociedades modernas. Rigorosamente, nas sociedades tradicionais o homem percebe-se não como indivíduo mas como membro integrado por uma relação de pertencimento a uma totalidade comunal que lhe atribui desde cedo, adscritivamente, em virtude de seus atributos herdados, tais como condição ou status, uma posição e um papel determinados. Ao mesmo tempo, a sociedade tradicional provê aos seus membros uma normatividade prescritiva exaustiva, que contém padrões claros, definidos e precisos, modelos prontos e acabados, de resposta a cada espécie de situação, cuja observância ou transgressão lhes permite antecipar com inteira segurança as conseqüências de seu comportamento. Nas sociedades tradicionais as expectativas recíprocas dos sujeitos, quanto aos valores envolvidos nas relações sociais, são muito amplas mas, ao mesmo tempo, quase íntimas, difusas e não claramente definidas e delimitadas. Contudo, as expectativas quanto ao acesso às posições econômicas ou políticas são particularistas e adscritivas.
Ao longo do processo de modernização os laços primários, comunais, pessoais e concretos sofrem um processo de inevitável dissolução e são crescentemente substituídos por laços societários, voluntários mas contratuais, impessoais e abstratos. Na orientação da ação, marcos normativos prescritivos são substituídos por marcos eletivos, isto é, por critérios gerais de conduta que não dispensam a escolha e a responsabilidade individuais exigidas pela complexidade inesgotável das formas modernas de vida. Os indivíduos percebem-se, assim, entregues à incerteza, à ansiedade e, segundo Erich Fromm, ao medo que a liberdade suscita. No acesso a funções e a papéis e na avaliação da conduta, os critérios adscritivo-particularistas cedem lugar a critérios universalistas, fundados do desempenho medido pela competência e pela competição.
Nas sociedades tradicionais as ações contêm em si mesmas a sua gratificação emocional, enquanto a ação típica da sociedade moderna é afetivamente neutra e instrumentalmente subordinada a uma gratificação conseqüencial, que nela não se encontra. O homem tradicional orienta-se a partir de dentro e para dentro – isto é, da e para a família e os grupos primários e intermediários – enquanto o indivíduo moderno se orienta a partir de fora e para fora – isto é, da e para a sociedade e o mercado impessoais e anônimos.
Essas mudanças psicológicas fundamentais convertem a incerteza na característica central da modernidade: incerteza quanto ao comportamento dos outros, quanto às conseqüências da própria ação e quanto ao futuro. É impossível suprimir a incerteza e, se tal fosse possível, eqüivaleria a eliminar um poderoso estímulo e fonte de energia para a ação (vale lembrar aqui a afirmação de Freud de que o homem deve aprender a conviver com uma certa dose de angústia). A incerteza e a insegurança tanto quanto o medo são as fontes aparentes mais importantes da ansiedade do homem nas sociedades em processo de modernização e por este motivo ocupam um papel decisivo na gênese psíquica-social das ideologias totalitárias. Não é outro o motivo pelo qual o totalitarismo é, a rigor, um fenômeno moderno.
A incerteza encontra-se na medula de democracia pluralista e competitiva, a forma política por excelência da sociedade moderna. A higidez psicológica do homem moderno depende de sua capacidade de conviver tão racionalmente quanto possível com a incerteza. Entretanto, é possível e racional reduzir a incerteza. E reduz-se a incerteza com informação fatual, com informação contextual e com saber científico ou teórico. Mas há uma forma mágica e radical de reduzir ou mesmo eliminar a incerteza, que dispensa todo tipo de informação, ciência ou conhecimento orientado para a realidade: é a adesão emocional a uma teoria omnicompreensiva da história humana que ofereça a antecipação e a presencialização de um futuro imaginário. Como essa teoria não pode ser submetida ao teste ou à refutação empíricos, a sua lógica interna basta para assegurar a coesão intelectual que lhe permite prover uma incrível sensação de segurança psicológica.Um dos traços cognitivos mais notáveis da mentalidade totalitária, observável em Rousseau e Marx, consiste em perceber a complexidade estrutural, e a especialização funcional crescentes que, normalmente, caracterizam o desenvolvimento tecnológico e econômico e a modernização sócio-política, como fenômenos patológicos. Essa percepção, derivada da identificação das repercussões desses fenômenos sobre as consciências individuais, se encontra na base do conceito de alienação, definida como cisão, distanciamento e estranhamento, entre os sujeitos humanos e as suas obras ou os produtos de sua interação e de seu trabalho.
No Discurso sobre as Ciências e as Artes, Rousseau concluiu que o progresso da cultura havia debilitado a virtude, corrompido os costumes, fragilizado o convívio social e tornado o homem infeliz.
Schiller descreveu pateticamente a alienação do homem moderno: “A satisfação está separada do trabalho, os meios estão separados dos fins e o esforço também o está da recompensa. Eternamente acorrentado apenas a um único fragmento do todo, o homem se considera apenas como se fosse um fragmento”.
Em Feuerbach a alienação consistia basicamente na cisão entre o indivíduo, finito, e a espécie, infinita. Para Marx, a cisão entre o homem e a natureza, entre o indivíduo e a sociedade, entre a sociedade e o Estado, entre o público e o privado, entre o trabalho, produtor, e a sua obra, a mercadoria, são diferentes manifestações da alienação humana na sociedade capitalista e de classes, que o comunismo faria desaparecer.
Contudo, alguns fenômenos identificados como alienação constituem mecanismos fundamentais sem os quais nenhuma sociedade minimamente civilizada funcionaria. O que seria, por exemplo, uma sociedade na qual não houvesse a separação entre as esferas pública e privada? Seria uma sociedade que tivesse privatizado inteiramente o público? Mas, neste caso, o que aconteceria com uma sociedade civil sem norma ou instituição públicas? Mergulharia certamente na anomia e na autodestrutividade do estado na natureza. E, inversamente, o que seria uma sociedade que tivesse publicizado inteiramente as relações privadas? Seria a realização extrema do totalitarismo. E é essa certamente a utopia marxista."
in "O TOTALITARISMO TARDIO" (José Giusti Tavares)
(continua)
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