quinta-feira, 8 de abril de 2010

A concepção totalitária de democracia (1a. parte)

A) Democracia Constitucional e Democracia Totalitária

“O conceito de democracia não é unívoco. Ao contrário, contém uma profunda ambigüidade que só a distinção fundamental entre governos constitucionais e governos não-constitucionais pode desfazer. Portanto, a distinção tem precedência lógica e axiológica sobre o conceito. Na tradição intelectual do Ocidente convivem em oposição e em conflito duas concepções de democracia: a concepção constitucional­ – ortodoxa, íntegra e virtuosa – e a concepção não constitucional, desviante e perversa ... ou a concepção totalitária de democracia.

Em sua versão constitucional a democracia é essencialmente um método, consensual e destituído de qualquer conteúdo finalístico, de tomar decisões públicas – isto é, decisões que, assumidas por todos os membros da comunidade política, diretamente ou através de seus representantes, obrigam em comum e universalmente a todos, quer lhes tenham sido favoráveis quer lhes tenham sido contrários – e, ao mesmo tempo, um valor em si mesma, pois a adesão à excelência do método é independente dos cursos de decisão e de ação que ele torna possíveis e não pode ser instrumentalmente subordinada ou condicionada à consecução de qualquer objetivo particular.

A concepção processual da democracia representativa, que a percebe como método destituído de qualquer conteúdo finalístico, é o coroamento do esforço bem-sucedido – elaborado pioneiramente por Joseph Schumpeter, na Parte IV de seu conhecido livro, publicado em 1942, Capitalismo, socialismo e democracia – de conciliar e integrar a Teoria das Elites – de Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto – e a Teoria das Organizações – de Moisei Ostrogorski, Robert Michels e Max Weber – com a teoria normativa tradicional da Democracia. Schumpeter inverteu em dois sentidos importantes o conceito tradicional da democracia representativa.

A democracia representativa schumpeteriana não é propriamente uma ordem política na qual indivíduos e grupos competem entre si pela eleição de partidos e de candidatos incumbidos de representá-los e de governá-los, mas – ao contrário – um sistema pluralista de elites e de organizações políticas que, buscando apropriar-se da ordem estatal, competem entre si pela conquista, por meio do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade, por parte das não-elites, diante das quais são responsáveis. Neste sistema, por outro lado, os partidos não competem pelo governo para realizar programas, mas, ao contrário, concebem programas de governo, quando na oposição, e os cumprem, quando no governo, para assegurarem, por meio de eleições pluralistas e competitivas periódicas, a conquista do poder público, a permanência nele ou o retorno a ele.

No paradigma schumpeteriano de análise política, o partido constitui um caso particular de empresa e a competição periódica dos partidos pelo voto para conquistar o governo ou a sua participação nele, um caso particular da competição entre grandes empresas pela preferência dos consumidores num mercado relativamente oligopolizado. Neste processo, entretanto, o partido não renuncia ao seu papel clássico, que consiste em dirigir os diferentes segmentos da sociedade no sentido dos interesses que lhes pertencem e dos quais são, sem dúvida, os únicos juizes, mas cuja realização requer o critério e o capital de sabedoria política acumulados pelo partido.

O realismo schumpeteriano pode parecer cínico, porque não faz qualquer concessão à ingenuidade, à hipocrisia ou ao sectarismo, mas tem o mérito de excluir a substantivação totalitária do conceito de democracia.A democracia constitucional alimenta-se ao mesmo tempo do consenso acerca das regras do convívio político e do dissenso, cuja legitimidade e propriedade integradora reconhece, acerca dos objetivos. Nela, indivíduos e grupos – divididos pela diversidade de interesses, pelo pluralismo de fins e por concepções diferentes acerca do interesse público – obrigam-se universalmente a um conjunto de regras processuais que lhes permitem ao mesmo tempo o convívio, a cooperação pacífica e ordenada e a competição pela definição das políticas públicas. Em suma, o método democrático viabiliza um sistema pluralista de elites, de organizações políticas e de partidos que competem entre si pela posse ou pelo controle do governo por meio da conquista, através do sufrágio periódico, do consentimento e da autoridade que lhes conferem as não-elites, diante das quais são responsáveis.

Na construção da democracia ocidental contemporânea o constitucionalismo precedeu secularmente o governo representativo e ambos precederam, também secularmente, a democracia, isto é, a expansão popular do voto e da participação política.

No constitucionalismo o exercício das funções e do poder inerentes à soberania é distribuído entre agências governamentais que, condenadas a atuar em concerto, ao mesmo tempo cooperam e limitam-se reciprocamente, de modo que, ao fim e ao cabo, a soberania não pertence a qualquer indivíduo, organização, partido ou segmento social, nem mesmo ao povo ou aos seus representantes, mas à Constituição, às Leis e às Instituições, nesta hierarquia, as quais, consensualmente reconhecidas pela comunidade política, definem obrigações e direitos, individuais e sociais, asseguram predictibilidade ao convívio coletivo e limitam o exercício de todas as formas, públicas e privadas, de poder.

A idéia do constitucionalismo moderno encontra-se sintetizada no artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem constituição”.

A base sociológico-política da difusão e da limitação do poder, bem como das liberdades individuais e coletivas, que integram o constitucionalismo, é a existência de uma multiplicidade de associações intermediárias voluntárias, que funcionam como mediadoras entre o indivíduo e o Estado e como centros de lealdades alternativas, e de uma sólida tradição de auto-governo local. Evidências dessas práticas foram surpreendidas por Políbio na Constituição Romana, por Montesquieu no feudalismo político europeu ocidental e por Tocqueville nas colônias inglesas da América.

Concebida por Montesquieu, a engenharia institucional do constitucionalismo, com a teoria da separação de poderes e o mecanismo de freios e contrapesos que lhe são inerentes, foi ulteriormente aperfeiçoada por Hamilton, Jay e Madison – os Pais Fundadores da Constituição norte-americana – nos artigos reunidos no Federalist Papers, e pelas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte.

O fundamento da democracia constitucional, explicitamente consagrado pelo artigo 1º, inciso V, da Constituição brasileira de 1988, é o pluralismo político, isto é, o reconhecimento, por parte dos diferentes atores políticos, individuais e coletivos, de que é legítima a diversidade de interesses particulares e de concepções particulares acerca do interesse público que competem pelas decisões soberanas e pela posse ou pelo controle do governo. Por outro lado, a democracia constitucional é essencial e não apenas contingencialmente representativa, pois, como demonstrou Kant, dada a sociabilidade insociável que caracteriza a sua natureza, os indivíduos humanos são incapazes de se auto-governarem e a liberdade constitucional não pode ser outra se não a sujeição voluntária, por parte de cada um e de todos os sujeitos que integram a comunidade política, às leis a que se auto-obrigam por antecipação ao elegerem representantes com a faculdade e a responsabilidade independentes de elaborá-las.

Em outros termos, o governo representativo não é uma limitação ou uma contingência da democracia constitucional. Ao contrário, a democracia ou é representativa e, deste modo, constitucional, ou não é representativa e, assim, não é constitucional. Na democracia pluralista e representativa cada partido político é uma organização de pessoas associadas entre si não por interesses particulares comuns nem por uma visão única e unívoca da boa sociedade, mas por uma concepção particular, que possuem em comum, acerca do interesse público; o que é muito diferente quer da idéia privatista, arcaica, da representação política, quer da idéia, peculiar ao totalitarismo, do partido como portador de uma ideologia uniforme, monolítica e omnicompreensiva.

Enfim, a expansão popular da cidadania ampliando a comunidade política para fazê-la virtualmente coincidir com a sociedade civil, introduz, sobre a base do constitucionalismo e do governo representativo, a democracia em sua forma política virtuosa.

Ao contrário, a democracia totalitária identifica-se como a busca de uma ordem social final única e unívoca a ser trazida do reino da virtualidade ao reino da história concreta por obra de um grupo, de uma organização ou de um partido revolucionário que, detendo a consciência antecipada do processo, também único e unívoco, que a ela conduz, deve conquistar a direção hegemônica da sociedade. E, se tanto essa ordem pública final e ideal quanto o processo que a ela conduz são únicos e unívocos, não há lugar, em política, para versões alternativas, quer acerca de fins, quer acerca de meios; versões ou projetos alternativos constituem, na melhor hipótese, equívoco ou erro, e, na pior, mas não menos freqüente, delito.

Num estudo publicado em 1951, J. L. Talmon identificou a origem teórica da democracia totalitária na concepção messiânica rousseauniana de vontade geral. Mas já em 1944, em seu livro clássico - A sociedade aberta e seus inimigos - Sir Karl Popper derivara a teoria do totalitarismo político do que denominou o historicismo de Platão e sucessivamente de Hegel e de Marx”.


(continua)

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