segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

AS FUNÇÕES DO PROFESSOR

O ensino, mais do que a maioria das outras profissões, transformou-se, durante os últimos cem anos, de uma pequena profissão altamente especializada referente apenas a uma minoria da população, num grande e importante ramo do serviço público. Essa profissão tem uma grande e honrosa tradição, que se estendeu desde o raiar da história até tempos recentes, mas qualquer professor do mundo moderno que se permite ser inspirado pelos ideais de seus predecessores está sujeito a perceber claramente que a sua função não é ensinar o que ele acha que deve ensinar, mas disseminar crenças e preconceitos que possam ser considerados úteis por aqueles que são os seus empregadores. Em outras épocas esperava-se que um professor fosse um homem de conhecimento ou sabedoria excepcionais, em cujas palavras os homens faziam bem em atentar. Na Antigüidade os professores não constituíam uma profissão organizada, não se exercendo controle algum sobre o que ensinavam. É verdade que, com freqüência, eram punidos, depois, pelas suas doutrinas subversivas. Sócrates foi condenado à morte e afirma-se que Platão foi lançado à prisão, mas tais incidentes não interferiram com a divulgação de suas doutrinas. Qualquer homem que possua o impulso genuíno de professor mostrar-se-á mais ansioso de sobreviver em seus livros do que em sua própria carne. Um sentimento de independência intelectual é essencial ao desempenho adequado das funções do professor, já que a sua tarefa é instilar o que sabe a respeito do conhecimento e da razoabilidade no processo de formar a opinião pública. Na Antigüidade, desempenhava ele livremente as suas funções, exceto quando se verificavam intervenções espasmódicas e inefetivas por parte de tiranos ou de multidões. Na Idade Média, o ensino tornou-se prerrogativa exclusiva da Igreja Católica, tendo como resultado pouco progresso, quer intelectual, quer social. Com o Renascimento, o respeito geral pela cultura trouxe de novo considerável grau de liberdade ao professor. É verdade que a Inquisição obrigou Galileu a retratar-se e queimou Giordano Bruno na fogueira, mas ambos já haviam realizado o seu trabalho antes de serem punidos. Instituições tais como as universidades permaneceram, em grande parte, nas garras dos dogmatistas, resultando daí que a maioria do melhor trabalho intelectual foi feito por homens de cultura independente. Na Inglaterra, principalmente, até quase o fim do século dezenove, dificilmente se encontravam homens verdadeiramente proeminentes, com exceção de Newton, que estivessem ligados a universidades. Mas o sistema social era tal que isso pouco interferia com as suas atividades ou a sua utilidade.

Em nosso mundo altamente organizado, deparamos com um novo problema. Algo que se chama Educação é ministrado a toda gente, geralmente pelo Estado, mas também, às vezes, pelas Igrejas. O professor transformou-se, assim na grande maioria dos casos, num servidor cortês obrigado a executar as ordens de homens que não têm a sua cultura, não dispõem de experiência quanto ao trato da juventude, e cuja única atitude com respeito à educação é a de um propagandista. Não é muito fácil de ver-se de que maneira podem os professores, em tais circunstâncias, realizar as funções para as quais estão especialmente adequados.
A educação pelo Estado é obviamente necessária, mas, de maneira igualmente óbvia, envolve certos perigos contra os quais deve haver certas precauções. Os males que há a temer puderam ser vistos, em sua plena magnitude, na Alemanha nazista, podendo, ainda hoje, ser observados na Rússia. Onde tais males prevalecem, homem algum pode ensinar, a menos que subscreva um credo dogmático que poucas pessoas de inteligência livre são capazes de aceitar sinceramente. Não apenas deve ele subscrever um tal credo, mas, ainda, ser indulgente diante de abominações, abstendo-se de manifestar suas opiniões a respeito de assuntos correntes. Enquanto tal homem estiver apenas ensinando o alfabeto e a tabuada, os quais não despertam controvérsias, os dogmas oficiais não deturpam, necessariamente, a instrução por ele ministrada; mas mesmo quando se acha ensinando esses elementos, espera-se, nos países totalitários, que ele não empregue os métodos que lhe pareçam os mais capazes de produzir os melhores resultados didáticos, mas que inculque medo, subserviência e obediência cega, exigindo indiscutível submissão à sua autoridade. Logo que passa além dos simples elementos, é obrigado a adotar a opinião oficial em tudo o que se refere a questões controvertidas. O resultado disso é que os jovens se tornaram na Alemanha nazista – e ainda o são na Rússia – intolerantes fanáticos ignorantes do mundo existente fora de seus países, desacostumados inteiramente à discussão livre e incapazes de perceber que as suas opiniões possam ser discutidas sem maldade. Tal estado de coisas, mau como é, seria menos desastroso se os dogmas inculcados fossem, como no catolicismo medieval, não só universais como, também, internacionais. Mas toda a concepção de uma cultura internacional é negada pelos dogmatistas modernos, os quais pregaram um credo na Alemanha, outro na Itália, outra na Rússia e ainda outro no Japão. Em cada um desses países, o nacionalismo fanático era o que mais se ressaltava no ensino dos jovens, resultando daí que os homens de um país não têm nenhuma base em comum com os homens de outro, e que nenhuma concepção de uma civilização comum se coloque no caminho de um ferocidade belicosa.

A decadência do internacionalismo cultural continuou de maneira cada vez mais acentuada desde a Primeira Guerra Mundial... Há países em que o aprendizado do nacionalismo é menos extremo, mas não deixa de ser, em toda parte, muito mais forte do que era antes. Há uma tendência na Inglaterra e nos Estados Unidos para se dispensar os professores franceses e alemães encarregados do ensino de francês e alemão. A prática de se considerar a nacionalidade de um homem, em vez da sua competência, ao designá-lo para um posto, é prejudicial à educação, além de constituir uma ofensa ao ideal da cultura internacional, que foi uma herança por nós recebida do Império Romano e da Igreja Católica, mas que está agora sendo submergida por uma nova invasão bárbara, procedente mais de baixo do que de fora.

Em países democráticos, tais males ainda não atingiram nada que se possa comparar a essas proporções, mas deve-se admitir que há grave perigo de que semelhantes manifestações se verifiquem na educação, e que esse perigo só poderá ser evitado se aqueles que acreditam na liberdade de pensamento estiverem alerta, a fim de proteger os professores contra a escravidão intelectual. Talvez o primeiro requisito para isso seja uma concepção clara dos serviços que podem ser esperados do professor em benefício da comunidade. Todos concordam com os governos do mundo em que a disseminação de informação de caráter positivamente não controvertível é uma das funções menos importantes do professor. Essa é, certamente, a base em que se elaboram todas as demais e, numa civilização técnica como a nossa, isso tem, indubitavelmente considerável utilidade. Deve existir numa comunidade moderna um número suficiente de homens que possua a habilidade técnica necessária à preservação do aparelhamento mecânico do qual depende o nosso conforto material. Além disso, é inconveniente que uma grande parte da população não saiba ler nem escrever. Por essas razões, somos todos a favor da educação compulsória universal. Mas os governos perceberam que é fácil, no decurso de tal instrução, inculcar crenças relativas a assuntos passíveis de controvérsia, produzindo hábitos mentais que podem ser convenientes ou inconvenientes aos que se acham à testa do governo. A defesa do Estado, em todos os países civilizados, está tanto nas mãos dos professores como nas das pessoas que pertencem às forças armadas. Exceto nos países totalitários, a defesa do Estado é desejável, e o simples fato de a educação ser usada para tal propósito não constitui, por si só, motivo para crítica. A crítica só surgirá se o Estado for defendido pelo obscurantismo e apelar para a paixão irracional. Tais métodos são inteiramente desnecessários no caso de um Estado digno de ser defendido. Não obstante, há uma tendência natural no sentido da sua adoção por aqueles que não possuem conhecimento de primeira mão relativa à educação. Acha-se muito difundida a crença de que as nações se tornam fortes pela uniformidade de opinião e pela supressão da liberdade. Ouve-se dizer, repetidamente, que a democracia enfraquece um país na guerra, apesar do fato de, em cada guerra importante desde o ano de 1700, a vitória ter ficado nas mãos do lado mais democrático. As nações têm sido levadas à ruína, de maneira muito mais freqüente, devido mais à insistência quanto a uma uniformidade doutrinal acanhada do que devido à discussão livre e à tolerância de opiniões divergentes. Os dogmatistas do mundo inteiro acreditam que, embora eles próprios conheçam a verdade, os outros serão levados a crenças falsas, se lhes for permitido ouvir os argumentos apresentados por ambas as partes. Esta é uma opinião que conduz a um ou outro destes dois infortúnios: ou um grupo de dogmatistas conquista o mundo e proíbe todas as idéias novas, ou, o que é pior, os dogmatistas rivais conquistam regiões diferentes e pregam o evangelho do ódio contra o outro grupo. O primeiro deste males existiu durante a Idade Média; o último, durante as guerras religiosas e, novamente, em nossos dias. O primeiro torna a civilização estática; o segundo tende a destruí-la completamente. Contra ambos, o professor deve ser a principal salvaguarda.

É óbvio que o espírito partidário organizado constitui um dos maiores perigos de nossa época. Na forma de nacionalismo, conduz a guerras entre nações e, nas outras formas, leva à guerra civil. Deveria ser tarefa dos professores manter-se fora das lutas partidárias e procurar inculcar na juventude o hábito da investigação imparcial, fazendo com que julgue as questões pelos próprios méritos destas e se mantenha em guarda contra a aceitação de afirmações ex parte, apenas pelo seu valor aparente. Não se devia esperar que o professor lisonjeasse os preconceitos quer da multidão, quer dos alto funcionários do Estado. Sua virtude profissional deveria consistir numa presteza em julgar com isenção de ânimo ambas as partes, empenhando-se por elevar-se acima da controvérsia e manter-se numa região de investigação científica imparcial. Se há pessoas para as quais o resultados das suas investigações possa ser inconveniente, deveria ele ser protegido contra o seu ressentimento, a menos que se possa provar haver ele se dedicado a uma propaganda desonesta, mediante a disseminação de inverdades demonstráveis.

A função do professor, porém, não é somente atenuar a violência das controvérsias. Tem ele tarefas mais positivas a realizar, e não pode ser um grande professor a menos que seja inspirado pelo desejo de realizar tais tarefas. Os professores são, mais do que qualquer outra classe profissional, os guardiães da civilização. Deveriam estar intimamente cônscios do que é a civilização, bem como desejosos de comunicar um atitude civilizada aos seus alunos. Somos, assim, levados à pergunta: que constitui uma comunidade civilizada?

Tal pergunta poderia ser respondida, comumente, tendo-se em vista apenas testes materiais. Um país é civilizado se tiver muitas máquinas, muitos automóveis, muitos banheiros e uma grande quantidade de meios rápidos de locomoção. Na minha opinião, a grande maioria dos homens modernos atribui a tais coisas demasiada importância. A civilização, no sentido mais importante, é uma coisa do espírito, e não acréscimos materiais ao lado físico da vida. É, em parte, uma questão de conhecimento e, em parte, uma questão de emoção. Quanto ao que diz respeito ao conhecimento, o homem deveria ter consciência da sua própria pequenez e do seu meio imediato em relação ao mundo no tempo e no espaço. Deveria encarar o seu próprio país não apenas como o seu país, mas como um dentre os demais países do mundo, todos eles com igual direito de viver, de pensar e de sentir. Deveria ver a sua própria época em relação ao passado e ao futuro, percebendo que as suas próprias controvérsias parecerão tão estranhas às épocas futuras como hoje nos parecem as controvérsias das épocas passadas. Adotando-se um ponto de vista ainda mais amplo, deveria ter consciência da vastidão das épocas geológicas e das enormes distâncias astronômicas; mas deveria ter consciência de tudo isso não como um peso que esmagasse o espírito da criatura humana, mas como um vasto panorama que alargasse a mente que o contemplasse. Quanto ao que diz respeito às emoções, é necessário, para que um homem seja verdadeiramente civilizado, um alargamento bastante idêntico de perspectiva, partindo do que é puramente pessoal. Os homens vão do nascimento à morte às vezes felizes, às vezes infelizes; às vezes generosos, outras vezes avaros e mesquinhos; às vezes heróicos, outras vezes covardes e servis. Para o homem que encara esse desfile como um todo, certas coisas se sobressaem como dignas de admiração. Certos homens foram inspirados por amor à humanidade; outros, pelo intelecto supremo, nos ajudaram a compreender o mundo em que vivemos; e alguns outros, mediante sensibilidade excepcional, criaram beleza. Tais homens produziram algo de bom e positivo para contrabalançar o longo registro de crueldade, opressão e superstição. Tais homens fizeram tudo que estava em seu poder para tornar a vida humana uma coisa melhor do que a breve turbulência dos selvagens. O homem civilizado, quando não pode admirar tem em mente mais a compreensão do que a reprovação. Procurará antes descobrir e remover as causas impessoais do mal do que odiar os homens que se encontrem em suas garras. Tudo isto deveria estar na mente e no coração do professor, pois, se isto estiver em sua mente e em seu coração, procurará transmitir tal coisa aos jovens que se acham sob os seus cuidados.

Homem algum poderá ser um bom professor se não tiver sentimentos de cálida afeição para com os seus alunos, bem como um desejo sincero de comunicar-lhes o que ele próprio considera de valor. Para o propagandista, os seus alunos são soldados em potencial de um exército. Estão destinados a servir a propósitos alheios à suas próprias vidas, não no sentido em que cada propósito generoso transcende o próprio eu, mas no sentido de contribuir para privilégios injustos ou para um poder despótico. O propagandista não deseja que os seus discípulos observem o mundo e escolham livremente um propósito que lhes pareça valioso. Deseja, como um artista podador, que o seu desenvolvimento seja exercitado e retorcido no sentido de adaptar-se ao propósito do jardineiro. E, ao contrariar o seu desenvolvimento natural, torna-se apto a destruir neles todo o generoso vigor, substituindo-o pela inveja, pelo espírito de destruição e pela crueldade. Não há necessidade de que os homens sejam cruéis; ao contrário, estou persuadido de que a maior parte da crueldade é resultado de se contrariar os impulsos dos primeiros anos, principalmente os impulsos no sentido do que é bom.

As paixões repressivas e de perseguição são muito comuns, como a situação atual do mundo o prova amplamente. Mas não constituem parte inevitável da natureza humana. Pelo contrário, são sempre, creio eu, resultado de alguma espécie de infelicidade. Deveria ser uma das funções do professor abrir novas perspectivas aos seus alunos, mostrando-lhes a possibilidade de atividades não só agradáveis como úteis, libertando, assim os seus impulsos generosos e impedindo o desenvolvimento do desejo de roubar aos outros as alegrias que lhes faltam. Muita gente se refere com desprezo à felicidade como um fim, mas pode-se suspeitar de que se trata de criaturas amargas. Uma coisa é renunciar à própria felicidade tendo-se em vista uma finalidade pública; mas é inteiramente diferente tratar-se a felicidade geral como se fosse coisa sem importância. No entanto, isso é feito, freqüentemente em nome de algum suposto heroísmo. Há, em geral, nas pessoas que adotam tal opinião, um veio de crueldade, baseado, provavelmente, em inveja inconsciente, sendo que a fonte dessa inveja será encontrada, quase sempre, na infância ou na juventude. O educador deveria ter por objetivo educar adultos livres desses infortúnios psicológicos, que não se mostrem ansiosos de privar os outros da felicidade porque eles próprios foram privados dela.

Como as coisas se encontram hoje em dia, muitos professores se acham incapazes de dar o melhor que podiam de si mesmos. Há várias razões para isso, algumas das quais mais ou menos acidentais, e outras profundamente enraizadas. Começando pelas primeiras dessas razões, convém dizer que a maioria dos professores se acha sobrecarregada de trabalho, sendo eles obrigados a preparar os seus alunos apenas para os exames, em vez de lhes ministrar um treino mental generoso. As pessoas que não estão acostumadas a ensinar – e isto inclui, praticamente, todas as autoridades educacionais – não têm idéia do dispêndio de inteligência que isso envolve. Não se espera que os padres façam sermões, todos os dias, durante várias horas, mas um esforço análogo é exigido dos professores. O resultado disso é que muitos deles ficam esgotados e nervosos, alheios às obras recentes sobre as matérias que ensinam, e incapazes de inspirar aos seus alunos a sensação de prazer intelectual que se obtém através de uma nova compreensão e de um novo conhecimento.

Isso não constitui, no entanto, de modo algum, a questão mais grave. Na maior parte dos países, certas opiniões são reconhecidas como corretas, enquanto que outras são tidas como perigosas. Espera-se que os professores cujas opiniões não são corretas se mantenham calados a respeito delas. Se mencionam as suas opiniões, isso é considerado propaganda, enquanto que a referência a opiniões corretas é considerada como sendo simplesmente instrução sólida. O resultado disso é que as vozes perquiridoras têm com freqüência de sair para fora da sala de aula a fim de descobrir o que é que pensam os espíritos mais vigorosos da sua época. Há nos Estados Unidos uma matéria chamada Instrução Cívica, na qual, mais do que em qualquer outra, se deverá esperar que o ensino conduza a caminhos errados. Ensinam aos jovens, numa espécie de compêndio que parece feito em copiador, como é que se supõe que os assuntos públicos devam ser conduzidos, evitando-se cuidadosamente que os alunos tenham qualquer conhecimento quanto à maneira pela qual são eles realmente conduzidos. Quando se tornam adultos e descobrem a verdade, o resultado é, com muita freqüência, um cinismo completo, no qual se perdem os ideais públicos – ao passo que, se lhes tivessem ensinado meticulosamente qual a verdade e feito, quando ainda bastante jovens, os comentários adequados, poderiam ter-se tornado homens capazes de combater males que, tal como são as coisas, não lhes despertam mais do que um complacente alçar de ombros.

A idéia de que a falsidade é edificante é um dos pecados que assediam aqueles que elaboram os planos educacionais. Eu não consideraria que um homem pudesse ser um bom professor a menos que ele estivesse firmemente resolvido, no exercício de sua profissão, a não ocultar a verdade devido ao fato de não ser ela considerada “edificante”. A espécie de virtude que pode ser produzida pela ignorância protegida é demasiado frágil, rompendo-se ao primeiro contato com a realidade. Há, neste mundo, muitos homens que merecem admiração, e seria bom que os jovens aprendessem a ver as razões pelas quais esses homens são admiráveis. Mas não é bom ensinar-lhes a admirar patifes ocultando a sua patifaria. Pensa-se que o conhecimento das coisas tais como são conduzirá ao cinismo, mas o mesmo poderá acontecer se o conhecimento chegar subitamente a causar surpresa e horror. Se vier, porém, gradualmente, devidamente entremeado com o conhecimento do que é bom, no decurso de um estudo científico inspirado pelo desejo de se chegar à verdade, não terá tal efeito. De qualquer modo, contar mentiras aos jovens, os quais não dispõem de meios para verificar o que se lhes diz, é coisa moralmente indefensável.

O que, antes de mais nada, um professor deveria procurar produzir em seus alunos, se se quiser que a democracia sobreviva, é a espécie de tolerância que nasce do empenho de se compreender aqueles que são diferentes de nós. Constitui, talvez, um impulso natural encarar-se com horror e aversão todas as maneiras e costumes diferentes daqueles com que estamos habituados. As formigas e os selvagens condenam os estranhos à morte. E aqueles que nunca viajaram, quer física, quer mentalmente, acham difícil de se tolerar as maneiras estranhas e grotescas de outras nações e de outras épocas, bem como outras seitas e outros partidos políticos. Esta espécie de intolerância ignorante é a antítese da visão civilizada, constituindo um dos mais graves perigos a que está exposto o nosso mundo superpovoado. O sistema educacional deve ter por objetivo corrigir tal coisa, mas pouquíssimo se fez nesse sentido até o momento. Em cada país, o sentimento nacionalista é encorajado, ensinando-se às crianças das escolas – coisa em que elas se acham bastante prontas a acreditar – que os habitantes de outros países são moral e intelectualmente inferiores aos do país em que os escolares vivem. A histeria coletiva, a mais louca e cruel de todas as emoções humanas, é encorajada, em vez de ser desencorajada, sendo os jovens incentivados a acreditar naquilo que ouvem com freqüência dizer, em lugar de acreditarem naquilo em que há uma base racional para se acreditar. Em tudo isso, não se deve censurar o professor. Eles não são livres para ensinar o que desejam. São eles que conhecem mais intimamente as necessidades da juventude. São eles que, mediante contato diário, se interessam pelos jovens. Mas não são eles que decidem o que deverá ser ensinado ou quais os métodos didáticos que deverão ser adotados. Deveria haver muito mais liberdade do que a que existe na profissão de professor. Deveria haver muito mais oportunidades de autodeterminação, mais independência quanto à interferência de burocratas e intolerantes. Ninguém consentiria, em nossos dias, que se sujeitasse os médicos ao controle de autoridades que nada entendessem de medicina e tencionassem dizer-lhes de que maneira deveriam tratar de seus pacientes, exceto, naturalmente, quando se apartassem criminosamente do propósito da medicina, que é o de curar o paciente. O professor é uma espécie de médico cujo propósito é curar o paciente de infantilidade, mas não lhe permitem decidir por si mesmo, baseado em sua experiência, quais os métodos mais apropriados para tal fim. Algumas poucas universidades históricas, pelo poder de seu prestígio, asseguram uma autodeterminação virtual, mas a imensa maioria das instituições educacionais se acha tolhida e controlada por homens que não compreendem o trabalho em que estão interferindo. A única maneira de se impedir o totalitarismo em nosso mundo altamente organizado, é assegurar um certo grau de independência aos indivíduos que realizam trabalho público útil, e entre tais indivíduos os professores merecem lugar de destaque.

O professor, como o artista, o filósofo e o homem de letras, somente pode realizar adequadamente o seu trabalho caso se sinta como indivíduo dirigido por um impulso criador íntimo, e não sentindo-se dominado e agrilhoado por um autoridade externa. É muito difícil de encontrar-se, em nosso mundo moderno, um lugar para o indivíduo. Pode ele subsistir no alto como ditador num Estado totalitário ou como magnata plutocrático num país de grandes empreendimentos industriais, mas no reino do espírito está se tornando cada vez mais difícil preservar-se a independência das maiores forças organizadas que controlam as existências de homens e mulheres. Caso se queira que o mundo não se veja privado do benefício a ser auferido de seus melhores espíritos, terá ele de encontrar algum método que lhes permita, apesar da sua organização, escopo e liberdade. Isso envolve uma abstenção deliberada por parte daqueles que dispõem do poder, bem como uma percepção consciente de que há homens aos quais se deve dar liberdade de ação. Os Papas da Renascença puderam sentir desse modo com respeito aos artistas renascentistas, mas os homens poderosos de nossa época parecem experimentar maior dificuldade em sentir respeito pelas criaturas dotadas de talento excepcional. A turbulência de nossa época é inimiga da fina flor da cultura. O homem da rua acha-se cheio de medo, não se sentindo, portanto, disposto a tolerar liberdades que não lhe parecem necessárias. Talvez devamos esperar tempos mais tranqüilos, antes de que as reivindicações da civilização possam de novo vencer as reivindicações do espírito partidário. Entrementes, é importante que ao menos alguns continuem a perceber as limitações, pela organização, do que pode ser feito. Todo sistema deveria permitir saídas e exceções, pois, se não o fizer, acabará, no fim, por esmagar tudo o que há de melhor no homem.

(Texto escrito pouco depois da Segunda Grande Guerra, pelo filósofo e matemático inglês Lorde Bertrand Russel).

Um comentário:

Anônimo disse...

Ah, professor, que estilo marcante