terça-feira, 13 de março de 2018

Mulheres indígenas no descobrimento do Brasil





     O estupro nasceu no Brasil com os primeiros aventureiros portugueses que aportaram na Bahia no dia 22 de abril de 1500. Dos grandes barcos que os conduziam emergiram, para admiração e espanto dos que estavam nas praias, dezenas de homens hirsutos, maltrapilhos, perebentos e a feder como um cão sarnento. Tais navegantes,  boa parte deles tangida dos porões das insalubres masmorras portuguesas, engrossavam compulsoriamente as fileiras das tripulações lusitanas em suas perigosas vilegiaturas por mares nunca dantes navegados desse vasto e ignoto mundo.


     Em pequenos botes remaram até a praia fronteiriça, na qual se acumulavam magotes de homens e mulheres completamente nus, armados apenas com tacapes e flechas, exibindo, despreocupados, adornos feitos com penas de exóticas aves coloridas e um ou outro macaco pendurado no pescoço. Os corpos, belos e hígidos, decorados com tintura preta e vermelha à base de jenipapo e urucum, revelavam mulheres completamente depiladas em suas vergonhas, bem diferentes das felpudas damas lusitanas, as quais ornam, até hoje, indisfarçáveis e robustos bigodes,  conforme bem assinalou, muito impressionado, em quatro oportunidades, na sua missiva, o escrivão Pero Vaz de Caminha, o mesmo que redigiu para o venturoso El-Rei a primeira carta informando-o de tão auspiciosos acontecimentos.


     Entre os dias 22 (dia da chegada) e 26 de abril (quando em sacrifício a Deus foi celebrada a primeira missa por frei Henrique), aconteceram tratativas entre os estranhos recém chegados e a indiada, das quais não ficaram maiores informações. Quatro dias, quatro longos dias naquelas praias paradisíacas, com o frondoso arvoredo cheio de frutos, e riachos cristalinos nos quais pululavam incontáveis peixes; e aquelas inúmeras fêmeas a sinalizar sacrifícios no altar de Eros... Sem qualquer blasfêmia contra o Corão, eram encarnações no aqui e agora superiores às huris prometidas nos céus pelo Profeta a seus fiéis mais extremados. 

     O cenário atual da costa baiana permite viajar nas fantasias de hoje para concretizar a imagem da época. É possível, sim, especular sobre os acontecimentos.

     
     O cunhadismo, ao qual se referiu Darcy Ribeiro, possibilitava aos nativos integrar em seu mundo homens de qualquer espécie. Em sua cosmovisão, aqui simplificada, bastava entregar uma irmã a outro homem para que este, como cunhado, se tornasse um parente e membro da família, do clã e da aldeia, com os deveres e direitos inerentes à relação instituída. Se esta era a concepção generosa dos ditos selvagens, outra era a perspectiva dos sujos navegantes. Seus olhares cúpidos para as fêmeas ao alcance das mãos em nada se assemelhavam ao modo indígena de pensar. Num caso era um mecanismo cultural e social respondendo a uma exigência organizacional simbólica; no outro a pura brutalidade do sexo em si, expressão do espírito predador selvagem, concretizado na prática do estupro da mulher, qualquer mulher, em qualquer lugar.

     Não seria atentar contra a verdade considerar o estupro das mulheres indígenas (muito antes do estupro sistemático das mulheres negras em eras subsequentes), o ato histórico fundamental da nacionalidade brasileira. As mulheres vitimadas dos dias de hoje são infelizes herdeiras da infâmia inaugural, e recorrente, do que se desenrolou ao longo dos séculos, desde aquele fatídico 22 de abril de 1500.


Nenhum comentário: