Em agosto de 1936, em sua consagradora primeira vinda ao Brasil, o
escritor Stefan Zweig pronunciou no Rio conferência de larga repercussão sobre
a Unidade
Espiritual do Mundo. Não foi um trabalho improvisado: insere-se
coerentemente na conhecida e destacada trajetória da militância pacifista de
Zweig, afirmada na Europa da 1.ª Guerra Mundial. A conferência será publicada
pela Casa Stefan Zweig de Petrópolis (cidade que foi sua última morada), cuja
existência tanto deve a Alberto Dines, o grande estudioso da vida e da obra do
escritor austríaco.
O movimento pacifista foi propulsionado pela ideia da efetivação
da paz, valor que se contrapôs à tradicional glorificação de guerra, de que é
exemplo a afirmação de Hegel na sua Filosofia do Direito, em que, contrapondo-se
a Kant, assevera que a guerra assegura a saúde moral dos povos, que se veria
afetada pela estagnação de uma paz perpétua, do mesmo modo como os ventos
protegem o mar da podridão inerente às águas paradas. Organizado a partir do
século 19 no âmbito da sociedade civil europeia o movimento pacifista foi uma
reação aos horrores e males da guerra que atingem e afetam as pessoas.
Foram os sofrimentos da Guerra da Crimeia que levaram, com o
relato de Henri Dunant e por sua ação, à criação, em 1863, da Cruz Vermelha. A
percepção dos males da guerra incentivou, no plano jurídico, a realização das
Conferências Internacionais da Paz em 1899 e 1907, em Haia. E impulsionou sua
visualização nas artes plásticas.
Nesse âmbito, cabe evocar a obra de Otto Dix, que com a força do
expressionismo reagiu aos desastres humanos provocados pela 1.ª Guerra Mundial.
Estes, como se vê no olhar de Dix, foram magnificados pela surpresa, tanto
estratégica quanto moral, proveniente do emprego militar dos avanços do
conhecimento e da tecnologia.
Dessa surpresa Zweig se dá conta. Lamenta, na conferência, que a
esperança no progresso da ciência como caminho unificador e salvador da
humanidade tenha sido posta em questão, pois ela foi utilizada para despejar
venenos e bombas sobre pessoas indefesas.
Zweig sabia que o meio de expressão do escritor não é o de um
pintor como Dix. Por isso em sua conferência se valeu de seus instrumentos, os
de um escritor com identidade própria. Encontrou assim o caminho apontado pelo
padre Antônio Vieira no Sermão da Sexagésima: “O pregador há de
pregar o seu e não o alheio. (...) Pregador que peleja com as armas alheias,
não hajais medo que derrube gigante”.
Na peleja contra o gigante do belicismo, Zweig, para lidar com uma
atmosfera envenenada por desconfiança, desarmonia e medo, recorre à alegoria
bíblica da Torre de Babel, que aponta para a incompreensão como base do
conflito na Terra. Babel é a grande e originária alegoria da pluralidade dos
discursos e das dificuldades da comunicação entre povos e culturas. Mas, como
lembra Paul Ricoeur, tradutores sempre existiram desde tempos imemoriais. A
capacidade de traduzir é o fio de Ariadne que conduz o homem para fora do
labirinto da incomunicabilidade. A tradução torna possível o diálogo entre
culturas e a aproximação entre povos, como caminho para a paz.
É pela compreensão por meio da afirmação da unidade da cultura que
Zweig vai articular o seu pacifismo. Para essa articulação estava muito bem
aparelhado porque ele foi, como observou Anatol Rosenfeld, um intelectual
mediador. Seguiu nessa vocação mediadora uma dimensão relevante da Europa da
Cultura, no âmbito da qual, para Bobbio, “a política divide, a cultura une”,
pois “a cultura é, por sua própria natureza, universal”.
Bobbio propôs uma esclarecedora tipologia das modalidades de um pacifismo
ativo que ajuda a
compreender as características da posição de Zweig. Observa que o pacifismo
ativo pode estar voltado para os meios de
evitar a guerra. É o que acontece com a busca da solução pacífica de conflitos
e o desarmamento, temas das conferências de Haia. É opacifismo
instrumental. Pode estar voltado para a criação de instituições que
contenham o arbítrio instigador da guerra dos Estados e ensejam a paz pelo
Direito. É o pacifismo institucional, de que são exemplos
a Liga das Nações e a ONU.
O pacifismo ativo pode empenhar-se na lida com a conduta dos que
criam as instituições e empregam ou não os meios violentos. É o pacifismo
de fins, que anima os que se dedicam a promover a cultura da paz como
ação pedagógica que, pelo vigor da persuasão, se empenha em instilar os méritos
do seu valor.
A conferência de Zweig é um grande exemplo de pacifismo de fins.
Ela mostra que se no desenvolvimento da humanidade existem terríveis
retrocessos e recaídas, nunca se rompe totalmente o fio da ascensão humana.
Cabe “aos donos da palavra”, os intelectuais, não duvidar da força da razão,
mesmo em época em que ela se vê combalida. Não são, como ele diz no fecho da
conferência, “as línguas e as montanhas e os mares que separam as pessoas, mas
seus preconceitos e sua desconfiança”.
O tema recorrente de sua exposição é o de traduzir e mediar para
superar o labirinto da incomunicabilidade, afirmando pela força da palavra sua
confiança no potencial de um entendimento entre os povos e a cultura. “A livre
admiração de valores estrangeiros não diminui a força criativa da alma.” É um
antídoto ao nacionalismo de orgulho e de prepotência, propiciador da névoa
tóxica da desconfiança.
As névoas tóxicas da desconfiança, da intolerância dos
fundamentalismos e da violência permeiam, com suas sombras, o mundo
contemporâneo. Daí a atualidade da conferência. Com efeito, como Bobbio
observou, estamos num momento em que “a violência talvez tenha deixado
definitivamente de ser a parteira da história e está se tornando cada vez mais
o seu coveiro”. Nesse contexto, na voz de Bobbio evocando Herzen, a
inteligência “pressiona terrivelmente” a tomada de posição. A conferência de
Zweig responde, com talento e firmeza moral, a essa válida pressão da
inteligência.
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