A Ajufe divulgou, sexta-feira, um manifesto em defesa dos juízes
dizendo que “estarão vigilantes às ameaças às suas prerrogativas” e que não vão
ceder “a qualquer tipo de intimidação ou pressão”. O que pensa disso?
Os advogados foram os primeiros a defender o retorno dos predicamentos da magistratura quando do golpe militar. No entanto, os advogados exigem reciprocidade, porque as suas prerrogativas não estão sendo respeitadas em um movimento de desapreço pelo exercício do sagrado direito de defesa.
Já o manifesto dos advogados do último dia 15, que o sr. apoiou,
diz que a Lava Jato se transformou “numa Justiça à parte”. O que isso
significa?
Parece que vivemos, em nossos dias, uma subversão do sistema
penal. O Direito Penal não é um direito eminentemente positivo, ele é também
garantidor. Ele reconhece a existência de princípios que garantem, ao cidadão,
uma pena justa – ou a proclamação de sua inocência. Não houvesse esse
garantismo penal, não haveria freios à ação punitiva do Estado. Ele poderia
punir, se vingar. Mas não pode. Ele tem de ser o Estado da punição e também o
da preservação da dignidade do acusado.
As garantias não existem?
O que ocorre é que a cultura punitiva que tomou conta do País
fez com que a própria sociedade passasse a ter, em relação ao processo, uma
expectativa sempre de culpa, de condenação. Não há nenhuma expectativa em
relação à inocência ou à absolvição.
Por que isso acontece?
Por causa dessa cultura punitiva, que imagino ter surgido pelo
aumento vertiginoso da criminalidade. A sociedade quer punição, seja contra o
crime violento ou contra o crime de colarinho branco. Até hoje, o Direito Penal
era o direito penal do pobre. Contra o pobre. Hoje – e esse é um aspecto muito
positivo –, o rico também pode ir para a cadeia se praticar algum delito.
As pessoas não querem justiça, querem é vingança, é isso?
É aonde eu queria chegar. Como há um desprezo pelas garantias
impostas pela lei, o que temos é uma visão puramente vingativa. A sociedade não
pensa em penas alternativas, pensa em prisão. E quando a mídia informa que
fulano está sendo investigado, suspeito de praticar um crime, a expectativa
imediata é que ele vá para a cadeia. Se não for, há uma frustração e os
cidadãos se voltam contra a Justiça. Dizem que ela é leniente, que foi
corrompida, que o advogado está lá para fazer chicana, encobrir o crime, para
ganhar dinheiro. Essa é a postura da sociedade.
A lentidão da Justiça não ajuda um pouco a construir essa
impaciência geral?
Acho que não. Primeiro, essa lentidão não é privilégio nosso. A justiça tem de ser lenta – não tão lenta, é verdade –, mas um juiz pode antecipar a aplicação da pena, nada impede, já pode aplicá-la com decisão em segundo grau.
Acho que não. Primeiro, essa lentidão não é privilégio nosso. A justiça tem de ser lenta – não tão lenta, é verdade –, mas um juiz pode antecipar a aplicação da pena, nada impede, já pode aplicá-la com decisão em segundo grau.
Que também demora um tempo enorme para ocorrer, não?
Aí é um problema da criminalidade e do aumento populacional.
Sabe quantos desembargadores tem o TJ paulista? Uns 310 ou 320. Eram 88 até
outro dia. Outra coisa é o discurso das elites, que sempre tentaram mostrar que
o crime “está do lado de lá”, do pobre, do favelado. E não se fala da causa do
crime… Não se discute o componente ético, o tecido ético da sociedade está
esgarçado, todo mundo quer levar vantagem e acha isso normal.
Qual o peso, nisso tudo, da ação policial e das prisões?
Fui secretário da Segurança, em um Estado que tem 110 mil homens
na PM, e perguntava: quantos homens estão nas ruas? Eram uns três mil. O resto
é quartel, controle, burocracia. Na prática, mandam recolher menores nas ruas e
esquecem que esses menores vão sair da cadeia. Em que estado? Temos um sistema
penitenciário destruído, que trabalha contra os objetivos da sociedade.
Pode explicar melhor?
Teoricamente, o objetivo do sistema penal é recuperar o sujeito,
colocá-lo de volta na sociedade. Não falo aqui do bandidão, falo do sujeito que
roubou um ovo na esquina, vai preso e vai sair bandido. A ideia dominante é que
o importante não é punir, é evitar o crime. O Brasil é o quarto país do mundo
em prisões (são uns 650 mil detidos), dos quais 30% não foram julgados. Não é
possível.
No caso do manifesto contra a Lava Jato, o que especificamente
está acontecendo de errado, que prejudica os denunciados?
Começo lhes dizendo que hoje está mais difícil advogar do que no
tempo da ditadura. Eu ia ao balcão da Auditoria Militar, mostrava uma
procuração e recebia o processo. Hoje há casos em que não se consegue o acesso
aos autos. Mas, quanto à Lava Jato, torço com ardor para que as ilicitudes que
sangraram a Petrobrás sejam apuradas e os responsáveis punidos, na medida de
suas responsabilidades. Mas ao mesmo tempo torço para que isso ocorra dentro da
lei, com respeito à Constituição e à dignidade dos acusados. E tem de ficar
claro que o advogado não defende o crime, defende os direitos do acusado,
previstos em lei. Eu posso até dizer pra ele “você é culpado”, mas eu vou
tentar colaborar para preservar suas garantias constitucionais.
Como avalia, no processo, a atuação do juiz Sérgio Moro?
Ele é, talvez, o mais operoso juiz que eu conheci na vida.
Incrível como trabalha. Segundo ponto, é muito bem preparado tecnicamente. O
que acho é que ele não dá ao direito de defesa a relevância que este tem, para
a obtenção da verdade. Tenho às vezes a impressão de que ele já tem uma ideia
preconcebida em relação à culpabilidade de alguém. De que acha que o advogado
atrapalha e que aceita sua presença no processo como uma exigência
constitucional.
O sr. e outros advogados criticam também as prisões e as delações
premiadas. Por quê?
Primeiro, existe um instrumento no processo civil chamado
condução coercitiva. Eu mando uma intimação – eu, delegado – e você não vai.
Mando a segunda, você não vai. Na terceira, eles pegam você para depor. Hoje
não há mais isso. Os policiais aparecem em sua casa, fazem uma busca, e já o
levam para a prisão.
E quanto às delações?
É outro problema, a prisão preventiva para delação. Afirmam que
80% delataram em liberdade, mas 20% delataram e estão presos. O que isso
significa? Um desvirtuamento perigosíssimo da prisão preventiva. Porque a ação
do Moro é exemplar. Um modesto juiz de cidadezinha pensa: “Caramba, se o
Joaquim Barbosa fez, o Moro fez, por que eu não posso fazer?”. E se esquece de
que prisão preventiva é exceção. Que, pela Constituição, todo mundo é inocente
até prova em contrário. Prisão preventiva se adota para preservar a ordem, a
instrução processual, a futura aplicação da lei. Mas não é, de forma alguma,
uma antecipação de mérito.
Procuradores alegam também que tudo é filmado e que a grande
maioria das sentenças, nesses processos, tem sido confirmada em tribunais
superiores. Como explicar?
Veja, a delação é um instrumento inédito no direito brasileiro.
E não há como comparar com a delação no direito americano. O direito penal dos
EUA é negocial. O advogado do réu e o promotor negociam pena, detalhes. No
Brasil existem a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório,
o direito ao juiz natural – para se evitar o tribunal de exceção. O que me
choca é a delação do preso. A lei diz: a delação precisa ter dois critérios
para ser válida. Efetividade de conteúdo e voluntariedade. Ora, não tenho
conhecimento de que a partir de delação tenha havido diligências para se saber
da efetividade do que foi dito. Não conheço.
Mas essa é uma das precondições para se reduzir a pena do delator,
não?
Mas eles não estão investigando… a maioria não foi. E não há de
se falar em vontade íntegra com o sujeito preso. Nessa situação, o que ele quer
de fato é ir embora. Tem mais. Eles chegam, ameaçam levar o sujeito preso e,
para não o levar, pedem a delação. Pra mim, delação não poderia ser de réu
preso.
Por que acha que os tribunais superiores estão aceitando as
sentenças?
Não sei, às vezes acho que os tribunais superiores estão se
rendendo a uma movimentação que recebeu os aplausos da sociedade.
Ou seja, em sua avaliação a própria Justiça merece reparos pela
situação que se criou?
O que vejo é um outro efeito nisso tudo: os juízes recém-ingressos
se sentem autorizados a violentar o direito de defesa, os contraditórios, para
ter resultados rápidos e que coincidam com o que eles imaginam ser o querer da
sociedade. Donde eu completo dizendo que, de todos os receios que tenho quanto
à atuação do Judiciário, meu maior temor é contra o autoritarismo ali
instalado. Ele desatende à lei e manifesta desapreço pelo direito do cidadão.
A advocacia dispõe de formas de lidar com isso?
Acho que a advocacia está sendo encarada hoje como algo
desnecessário. Parece que o promotor e o juiz entendem que eles já cumprem esse
papel – que engloba acusar, defender, julgar. Aliás, a crise da advocacia hoje,
quanto à valorização, à respeitabilidade, é inusitada. E agravada pela omissão
da Ordem dos Advogados do Brasil.
Que chances a OAB perdeu, a seu ver, de atuar bem?
Me parece que ela, quando colocou no armário a bandeira da
redemocratização, perdeu a bandeira. E sua grande falha, em relação à
advocacia, foi não esclarecer à população qual é o nosso papel.
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