"Folha - Em 2013, o sr. disse que nosso
grande problema era político, não econômico. E agora, que nossa economia
tampouco anda bem?
Manuel Castells - Quando aponto a
questão política me refiro a uma crise mundial dos sistemas tradicionais de
democracia representativa, por conta da corrupção, agora mais exposta porque as
pessoas têm mais acesso à informação e mais capacidade de organização por conta
da internet. O sistema político brasileiro está mal
como estão mal todos os sistemas do mundo. Há protestos e desgaste dos partidos
tradicionais, além da aparição de correntes populistas de extrema-direita e de
extrema-esquerda. Na Espanha, em Portugal e na Grécia, a reação é de esquerda. Na França, na
Inglaterra e na Alemanha, é de direita.
O que causa essa crise de
representatividade?
Os cidadãos deixaram de aceitar que sua
capacidade política seja um voto a cada quatro anos. Há uma insatisfação com
toda a classe política. E isso não significa que se acredite que todos os
políticos sejam corruptos, mas sim que há uma classe política que está separada
da cidadania, que é formada por profissionais que têm um interesse comum: o
monopólio da política da corrupção.
Essa é a raiz do problema no Brasil,
mas não só. Nos últimos anos vimos que afundou o sistema político italiano,
espanhol, grego, está afundando o da Argentina, o do México. É algo mais
profundo.
Qual a especificidade do Brasil, então?
Está ocorrendo a tempestade perfeita.
Junto a essa crise de representatividade, uma piora da economia. Houve um
período de bom crescimento com redistribuição. Mas a desaceleração da China fez
com que ficasse difícil manter o mesmo alto nível de gasto público. E então
ressurgiu a inflação, que já sabemos que foi um câncer para a economia e a
sociedade brasileira em outras épocas.
No momento em que o governo atual
percebeu que poderia haver um aumento da inflação, deveria ter restringido o
gasto público, e não o fez.
O sr. tem estudado comparativamente
protestos recentes –além do Brasil, os casos do Occupy (EUA), da primavera
árabe, do Chile, do México e outros–. O que têm em comum?
O fato de não se tratarem de movimentos
programáticos, mas emocionais, e de surgirem espontaneamente. Essa indignação
inicial permite que se amplie a temática do movimento. A palavra
"dignidade" se repete em todos eles. E por quê?
Porque as demandas não são concretas.
Ainda que existam problemas concretos. O que as pessoas pedem é reconhecimento.
A primavera árabe começou com a
autoimolação de um vendedor ambulante que não suportava mais o tratamento das autoridades
municipais.
Um protesto pela dignidade inclui a
luta contra a pobreza, mas é algo mais. É a tradução dos direitos humanos na
consciência individual.
Seja na favela, seja como um
profissional ou empresário, os indivíduos não sentem mais que as instituições
os representam.
Em sua opinião, quais as principais
diferenças dos protestos no Brasil em 2013 e 2015?
Em comum têm a denúncia da corrupção e
o sentimento de que há demandas dos cidadãos que não podem se expressar nos
atuais sistemas políticos.
O movimento de 2013 era popular, jovem,
e partiu de demandas concretas, mas imediatamente levantou o tema da dignidade.
E teve êxito, pois anulou-se o aumento das tarifas. O movimento no Brasil
causou a reação política mais positiva de um governo no mundo.
A presidente Dilma Rousseff se conectou
com ele. Mas o aparato do PT bloqueou a possibilidade de reforma. Marina Silva deve seu fugaz êxito na
campanha eleitoral justamente por ter se identificado com a crítica que se
fazia nas ruas. Porém, não pôde resistir à ofensiva publicitária do PT e ao
fato de que seu fundamentalismo evangélico não caiu bem entre a classe média
intelectual.
Considero significativo que duas
pessoas que disputaram a Presidência do Brasil –Marina e Dilma– haviam
respondido positivamente ao movimento.
Já em 2015, é a classe média e média
alta quem vai às ruas. E chegou-se a pedir a impugnação da presidente.
O grupo que pede um golpe de Estado é
pequeno e considero impossível que isso ocorra. Mas o significativo é que
existam cidadãos e políticos que o queiram.
2013 e 2015 se conectam com as recentes
manifestações em outras partes do mundo porque mostram que a sociedade que quer
expressar-se, hoje em dia, se expressa em movimentos espontâneos, coordenados
pela internet, e presentes na rua.
Essa é uma transformação completa, não
digo se é boa ou má, apenas digo que é uma transformação. As instituições
clássicas não são capazes de representar a diversidade da sociedade. Às vezes é
pela esquerda, às vezes pela direita, às vezes são jovens, às vezes são de
idade madura, mas o comum a todos é que não creem na possibilidade de
representação institucional, têm de conectar-se pela internet e sair às ruas.
E por que o brasileiro tem a sensação
de que, na internet, há demasiada violência e intolerância no debate?
A internet é um instrumento de
comunicação livre. Portanto, causa curto-circuito às instituições e ao poder do
dinheiro. A comunicação social estava
monopolizada até hoje ou pelo poder político, ou pelo poder econômico. Agora, a
internet permite às pessoas comunicar-se diretamente sem passar por esses
controles, e sem passar por qualquer censura. Ainda que se queira controlar a
internet, não se pode.
Eu não creio que no Brasil, com a
internet, exista mais agressividade no debate. O Brasil sempre foi agressivo.
Nos tempos da ditadura, no final dos anos 60, anos 70, o debate não só era
agressivo como se torturavam pessoas diariamente com impunidade.
A imagem mítica do brasileiro simpático
existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A
sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata. Esse é o
Brasil que vemos hoje na internet. Essa agressividade sempre existiu.
A única coisa que a internet faz é
expressar abertamente o que é a sociedade em sua diversidade. Trata-se de um
espelho.
Como hoje não precisam passar pelos
meios tradicionais de comunicação, as pessoas aparecem como realmente são.
A pergunta fundamental é: a liberdade é
um bem em si? Se dizemos que sim, então a internet é uma tecnologia de
liberdade, e portanto realiza uma mudança histórica. Mas é preciso aceitar que
liberdade é também para coisas de que não gostamos. É para todos. Portanto, se
ali se articulam formas de violência, racismo, sexismo, é porque isso existe na
sociedade.
Na internet, um racista ou um sexista
pode facilmente encontrar outros racistas e sexistas que, em seu entorno
social, não podem se declarar abertamente assim. Na rede, não há constrangimento
e se abre a possibilidade de expressão espontânea da sociedade.
E o que ocorre? Nos damos conta de que
a sociedade não é tão boa e angelical como gostaríamos que fosse. Vemos que, na verdade, a sociedade é
bastante má. No Brasil e em todos os outros países.
E de quem depende a mudança social
nesse novo contexto?
Certamente, não será da internet, mas
sim dos sujeitos da mudança. Se estes querem um golpe militar, a internet
facilita a organização desses sujeitos.
A internet é agnóstica, expressa o que
somos. E o que somos depende da cultura. Repito, não creio que o Brasil seja
pior agora, ou que a rivalidade política esteja mais intensa nesse momento do
que foi antes.
No Brasil, a desigualdade diminuiu, mas
ainda é muito grande. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dizia que o
Brasil não era pobre, mas sim injusto. Concordo. Há uma imensa riqueza,
controlada por 1% da população. Como é que a sociedade não vai estar com com
raiva? E há, também, um grupo de classe média que está descontente porque se
tira deles alguns recursos para redistribuir.
Trata-se de uma classe média
profissional, que teme perder seus privilégios e que vive melhor que seus pares
nos EUA e na Europa. Quem pode ter dois ou três empregados domésticos
permanentes, vivendo em casa, ou constantemente indo e vindo? Nenhuma classe
média do mundo! Pode-se ver famílias com empregados domésticos em outros
países, mas em número pequeno. Empregados domésticos como massa importante, só
no Brasil.
A descrença no Estado tende a gerar para-Estados
ou Estados paralelos, que se expressam na formação de milícias e de uma justiça
civil, como no México, ou terrorista, no caso do Estado Islâmico?
O México se transformou de fato num
narcoestado. Há uma guerra civil ali, e ressurgem leis que são ancestrais,
portanto reproduzem as formas de opressão que estão na raiz da violência.
O Estado Islâmico não é um grupo
totalmente desvairado. Representa uma resistência profunda ao colonialismo
cultural nos países muçulmanos e nas comunidades muçulmanas da Europa. Por que
jovens dos EUA e da Europa vão morrer ali? Por que mulheres vão se casar e ter
filhos com militantes do Estado Islâmico?
Essa diversidade cultural e política é
a que existe no planeta. Não podemos criar um standard do politicamente correto
e do humanamente correto, porque isso não existe. Cada vez que vamos afirmar um
direito num sentido, vamos encontrar outras formas de opressão.
Vivemos atualmente numa contradição, e
a internet exacerba isso. Se respeitamos realmente os direitos democráticos,
devemos aceitar que são os povos os que elegem as formas democráticas em que
querem viver.
Você não pode, com o pretexto do
civilizado ou do não civilizado, impor formas de vida. Isso é colonialismo
cultural e político, cuja reação violenta estamos vendo agora.
Sim, é preciso defender os direitos da
mulher em todo o mundo, mas as mulheres de cada cultura é que têm de
interpretar isso e mostrar como querem ter esse direito respeitado.
Valores universais há, mas a
interpretação deve ser feita em cada sociedade. A forma de defendê-los depende
de cada cultura.
Está em risco o Estado de Direito no
Brasil?
Do ponto de vista concreto, ele não
existe na maioria dos países. No Brasil, não há Estado de Direito. No Brasil,
há uma classe política corrupta que utiliza o Estado para seus próprios fins.
Faz isso como classe, ainda que como governantes concretos às vezes não o
sejam. No Brasil não há um Estado de Direito, há a manipulação do Estado de
Direito para manter um Estado patrimonial.
Mas ocorre o mesmo nos EUA. Ali se
governa para a classe política e seus interesses. Sem Wall Street não se pode
fazer política. E se Wall Street se afunda, toma-se o dinheiro dos contribuintes,
e se entrega a Wall Street.
O movimento Occupy não mudou isso, mas
fez com que mudasse a consciência dos EUA sobre a desigualdade social, que o
americano médio não sabia que era tão importante.
O Occupy é responsável por conscientizar os norte-americanos sobre a desigualdade social e desconstruir a ideia do "sonho americano", de que você pode chegar aonde quiser se for empreendedor e trabalhar".
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