terça-feira, 7 de abril de 2015

Janine e Gama Torres (relembrando Eça de Queiroz)

    Eça de Queiroz foi um notável criador de tipos. Ainda hoje podemos vê-los a andar por aí como se a realidade fosse um decalque da fantasia. Em O Conde de Abranhos, livro infelizmente inacabado, o genial autor português nos brinda com personagens e cenas que parecem ser uma descrição da atualidade política brasileira. O Conselheiro Gama Torres, por exemplo, faz lembrar, e muito, o atual ministro da educação do governo de dona Dilma. Se aos monólogos do Conselheiro fosse acrescentada a questão Ética, a similitude ficaria mais evidente. Segue abaixo trecho com a narração de Zagalo, o secretário do Conde, vazada na peculiar sintaxe do autor:

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“- Os fundadores da Bandeira Nacional, moços ambiciosos que rondavam em torno das Repartições do Estado – tinham achado um patrono num homem político que é uma alta figura em relevo na história Constitucional, o Conselheiro Gama Torres. A proteção que dava porém à Bandeira este homem notável era, como me dizia finamente o Conde de Abranhos, platônica, toda platônica. Não lhe dava dinheiro – porque chefe de família entendia com justiça, que a política não deve sorver fortunas, mas produzi-las. Não dava também ideias, porque, apesar da sua alta ilustração, que o tornara um dos grandes contemporâneos, a sua prudência, a sua reserva eram tais, que raras vezes, se lhe tinha ouvido uma opinião nítida: sabia-se que aquela fronte um pouco calva, de cantoneiras largas estava cheia de ideias: mas conservava-as como um tesouro escondido; - era por assim dizer um avaro intelectual: a sua ideia era para si; no silêncio do seu gabinete agitava-as, como o Pai Grandet, o seu ouro, regalando-se do seu brilho e da sua sonoridade: mas se alguém entrava, aferrolhava à pressa tudo, no cofre do cérebro – e a sua larga testa, de cantoneiras altas, não oferecia mais que uma fachada impenetrável, e monumental que impressionava a todos e não utilizava a ninguém. Era alto, encorpado, e os seus olhos azulados, e redondos, tinham uma singular falta de expressão e de intenção. Mas, todos sabiam, que por trás um mundo de ideias fermentava.


Janine e sua próspera barriguinha


























   - É singular quantos homens públicos, do nosso país, têm esta aparência parada, vazia, vaga, abstrata, sonâmbula: e todavia, eu que pelo Conde fui admitido a conhecê-los, sei quanto gênio habita, em segredo, naqueles cérebros calvos ou cabeludos, a que os superficiais, não lhes conhecendo as secretas riquezas, acham uma aparência alvar. É que nós somos uma raça reservada, inimiga da ostentação, da atitude – e ao inverso, os franceses que mal têm um fragmento de talento, tratam de trabalhar, empreender, agitar – nós com vastidões de gênio no interior, desprezamos estas demonstrações vaidosas, e guardamos para nós mesmos as nossas riquezas intelectuais, sem mesmo absolutamente as mostrar ao sol. Assim fazem os árabes que cercam os seus jardins deliciosos, e as suas habitações douradas, de um muro escuro de lama e pedra, de modo que se julga ver uma cabana onde realmente existe um Alhambra! Mas não somos de gênio árabe? Por isso o Conselheiro Gama Torres nunca se dignou fazer à Bandeira Nacional a esmola de uma ideia. Mas deu-lhe a proteção do seu nome; dizia-se a Bandeira é do Gama Torres, e isto trazia ao jornal uma autoridade imprevista. Muitas vezes, segundo me contou o Conde, durante os meses de estio em que a política, refugiada na sombra das quintas ou nas praias, dormita, - o redator da Bandeira, sem assunto para o seu artigo de fundo, recorria ao gênio do Conselheiro, como um pobre envergonhado. Gama Torres porém colocando-se no meio da casa, com as pernas separadas, o ventre saliente, as mãos atrás das costas, fitava o soalho, bamboleava o seu crânio fecundo, e murmurava, arregalando:

    - Ele há muitas questões!... Há questões terríveis. Há a prostituição... o pauperismo. Ele há muitas questões...

   - Mas, repito-o, era um avaro e ruim, para a esmola de uma ideia. Eu censuro que era sabido que ele dava o seu tempo às grandes questões sociais. Elas preocupavam-no tanto que era usual, sempre que diante dele se falava de questões políticas, - ou nos corredores da Câmara ou no Conselho, - ouvi-lo murmurar soturnamente com a voz dum homem que sabe o segredo dos destinos sociais – pois que o sabe, essa reta inteligência:

   - Ele há questões! Muito terríveis... O Pauperismo, a prostituição. São grandes questões... Mas há questões terríveis.

   - Elas pareciam com efeito terríveis, de uma tenebrosidade de abismo – quando se via o olhar esgazeado com que ele parecia mentalmente contempla-las.

   - Eu, pouco antes da sua morte, vi-o um dia, à noite, em casa do Conde, num dia de crise ministerial, e nunca esquecerei a terrível impressão que deixou aquele grande homem, de pé no meio da sala, esgazeando o olhar em redor, e dizendo cavamente:

   - Os senhores podem crê-lo, nem tudo é chalaça; ele há questões terríveis... A prostituição, o pauperismo, o ultramontanismo. Questões terríveis“.  

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   - QUEIROZ, Eça. O Conde de Abranhos. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997. Obras completas, II volume.

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