"Os dois teólogos divagavam sobre os pecados, os múltiplos pecados humanos. Faziam isto há anos como se tais análises fossem parte intrínseca de suas vidas. Seus pais os ligaram para todo o sempre às inumeráveis controvérsias bíblicas (deram a eles nomes de patriarcas para que não se esquecessem da antiga e perpétua travessia dos eleitos de D'us). Acostumados a sutilezas da cabala buscavam acrescentar ao acervo dos conhecimentos explicações novas e ousadas sobre os mistérios do passado. Mais desafiadores ficavam estes mistérios quando eram percebidos na perpétua atualização de um mesmo script. Tal era o que percebiam a cada momento, a cada instante na vida de muitos. "O rei Davi" - disse o mais novo - "matou Urias para lhe tomar a mulher. Esta foi uma violação do Decálogo." Um homem não pode assassinar outro, concordaram. "Este crime de Davi, no entanto, foi antecedido por outro" afirmou o velho teólogo, mais afeito aos detalhes das palavras. "Davi cometeu o pecado, o grave pecado do olhar; não deveria ter lançado suas vistas para onde lançou", foi o julgamento definitivo naquele instante. Cabisbaixos, ambos voltaram ao modo costumeiro dos devotos. E mergulharam no silêncio, o absoluto silêncio, o silêncio conformado ante os atos absolutos".
(Javier Kramer, in O navio à deriva)
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