segunda-feira, 26 de maio de 2008

Sociologia da Educação: TORNAR-SE PROFESSOR - A EMANCIPAÇÃO E A AUTONOMIA

Creio que podemos nos inspirar, inicialmente, em velhas lições da tradição rabínica para entender o processo formativo de um professor. Nilton Bonder, em A Cabala da Inveja, faz uma discussão sobre a humildade e o seu significado metafísico, e mais, sobre a maneira como se dá o desenvolvimento desta qualidade e o papel da relação mestre/discípulo nesta construção. Tudo começa, segundo ele, na iniciação.

“Por iniciação compreende-se o processo de “ignição” da alma de um indivíduo. Uma vez dada a partida, sua trajetória se inicia numa busca incessante com o objetivo de coadunar percepção e realidade. Esta ignição é dada a partir da reverência que, independentemente de qualquer tradição ou instituição religiosa, se tem por um mestre.

Quem é o mestre?

O mestre é o exemplo que nos faz buscar compreender a linguagem religiosa, posibilitando uma segunda, terceira, ou quantas oportunidades de entendimento se fizerem necesárias sem descartá-la. O mestre é, portanto, um facilitador da comunicação religiosa. O discípulo, ou aquele que respeita e reverencia o mestre, ouve nas suas palavras e vê nas suas atitudes muitos elementos que lhe escapam à compre-ensão. Mas, por amor e respeito a este mestre, ele busca, muitas vezes por toda uma vida, o significado e a razão por detrás daquelas palavras e atos, como filhos que reconhecem de seus pais a sapiência, transcorridos muitos anos após algo ser dito ou feito. Tal resgate de sapiência deve-se apenas parcialmente à essência do que é dito ou feito; a parcela restante é consequência da reverência e do amor que nutrimos pelos pais – como se nos recusássemos a aceitar que alguém tão especial como um mestre pudesse dizer algo trivial, ou agir de maneira leviana. Com o tempo, passamos a saber distinguir entre o que foi de fato trivial ou leviano e o que nos deixou realmente intrigados. Este elemento de perplexidade e intriga é que nos permitirá compreender coisas que, no caso de sua ausência, deixaríamos passar pelo crivo de nosso interesse e concernência. Portanto, o mestre é indispensável no processo de iniciação, pois é através dele que absorvemos noções concretas que só o tempo e o amadurecimento nos permitem compreender em toda a sua profundidade e sutileza.”

Nilton Bonder prossegue em sua narrativa mística para explicar como se internaliza a idéia do temor a D'us, na curiosa grafia do Nome do Eterno.

“O temor a D'us é um conceito difcil de ser compreendido sem que se tenha conhecido alguém que temesse a D'us. Só assim entendemos que esta não era uma pessoa com medo de D'us, mas alguém muito íntimo de D'us. Percebemos que não era um prisioneiro de dogmas, mas alguém que conseguia experimentar uma praxis em seu cotidiano altamente influenciada, ou quase que totalmente gerida, a partir de princípios abstratos e sutis. E, por conseguir desapegar-se da dimensão do óbvio e do lugar-comum, enxergava tão mais longe que conseguia até observar com distanciamento o óbvio e o lugar-comum. Atingira a sapiência.

Para alguém poder chegar ao “temor a D'us” deve ultrapassar o culto ao deus da recom-pensa, ao deus da necessidade imediata, ao deus do poder, ao deus da veneração pes-soal, e conseguir eliminar os elementos infantis de sua percepção simbólica de D'us. Deveria realizar o mesmo com a palavra temor e ultrapassar o temor do outro, o temor a si e o temor da dor, para poder se permitir sentir temor somente ao que é próprio se sentir temor. Só assim seus temores podem transformar-se em zelo ou escrúpulo, modificando integralmente a natureza do que antes percebíamos como temor. Neste sentido, temores não são sentimentos paralisantes mas, ao contrário, extremamente mobilizadores. São a coroa da sapiência.

A humildade, no entanto, tem nesta capacidade de perceber as verdadeiras relevância, apenas seu fundamento – seu tornozelo (na metáfora judaica). Isto porque a humildade é a interiorização profunda desta capacidade, de maneira que se transforma não apenas em exercício estético desta faculdade, mas num modo de vida. Em outras palavras, o hu-milde já consegue viver o “temor a D'us” sem ter que recorrer ao ar de sapiência ou à consciência orgulhosa de ser sábio.

Esta é a razão de a tradição judaica reconhecer que, embora existam muitos sábios neste mundo, os aprendizes da humildade são raros, e que existem apenas 36 humildes (Segundo a tradição judaica, cada geração é preservada pela existência de 36 justos. Esta idéia é derivada do versículo de Isaías (30:18), no qual a palavra ló – por Ele - é to-mada por seu valor numérico, que é 36)

Tornar-se sábio é poder erradicar as características do tolo de dentro de nós; tornar-se humilde é erradicar os traços do perverso de cada um de nós. O sábio elimina a dimensão do ciúme; o humilde elimina a dimensão da inveja. Ao humilde o seguinte é reservado, segundo as Escrituras (Prov. 22:4): “A retribuição ao humilde é o temor ao Eterno, as verdadeiras riquezas, as verdadeiras honras e a verdadeira vida”.

Para explicar as diferenças entre o tolo e o sábio, Bonder lança mão de prescrições hauridas na Ética dos Ancestrais:

“Há quatro disposições na gradação da raiva: 1) aquele que é fácil de provocar e também fácil de apaziguar (o que há de negativo neutraliza-se com o positivo); 2) aquele que é difícil de ser provocado e também difícil de ser apaziguado (o que há de positivo neutraliza-se com o negativo); 3) aquele que é difícil de ser provocado e fácil de ser apaziguado (este é o sábio); 4) aquele que é facilmente provocado e dificilmente apaziguado (este é o perverso).”

O tolo é representado por quem é provocado e também apaziguado com dificuldade. Este sujeito entende que não devemos nos submeter à provocação com facilidade. Tem a impressão de já ter formulado em seu interior uma postura através da qual percebe não existirem muitas situações na vida que possam provocá-lo. No entanto, isto é uma postura racional não interiorizada, pois, uma vez provocado, nãoconsegue encontrar desculpas ou formas de sublimar esta provocação. É designado por tolo, pois compreende apenas parcialmente o esforço a que se submete para não se deixar afetar. Representa em muitos casos aqueles que, reprimidos socialmente ou em sua educação, ficam prisioneiros de seus impulsos e de sua ética. Discutem e teorizam, mas não conseguem viver o que aparentemente sabem e acreditam.

A situação do perverso e do sábio é evidente. O primeiro perde-se no pantanal do rancor, enquanto o último passeia pelo pomar. O sábio tem uma leitura profunda da realidade que por si só torna difcil a provocação e que também lhe dá capacidade de rapidamente ajustar-se às situações da vida e de se controlar com facilidade.

Na dimensão afetiva encontramos o desejo simbólico de ódio em relação a alguém, com quem nos desentendemos com facilidade, e que estamos sempre propensos a criticar e julgar com desconfiança e malícia. Da mesma forma, dificilmente o desculpamos ou deixamos passar qualquer falta por ele cometida. Estamos no mundo da inveja que redunda em arrogância. Assumimos a postura do perverso e mergulhamos na rixa. Conservamos ódios por longos períodos, alguns por toda a vida.”

Telúricas ligações com conceitos ancestrais comuns talvez aproximem um rabino (como Nilton Bonder), e um pensador contemporâneo dos maiores do século XX (T. W. Adorno). Sente-se neste último a presença forte da tradição judaica no que ela tem de mais memorável para a história humana. Adorno também transitou nas sutilezas de Kant (o mais expressivo pensador sobre o Iluminismo), e nas vigorosas análises de Marx e de Freud. Profundamente preocupado com a Educação, principalmente após testemunhar e sofrer os efeitos da maior demonstração de barbárie da história humana (o período do nazi-fascismo), Adorno se perguntava sobre a questão dos fins da educação e o papel da autonomia. Em sua reflexão surgirá, com naturalidade, pontos referentes ao lugar do professor no cumprimento de sua missão civilizatória. No dizer de Valerio Rohden (in O totalitarismo tardio), obra referida na bibliografia já coloca-da disponível,

“Adorno definiu a educaçãonão como a tal de formação do homem, porque ele questiona a qualquer um esse direito, nem como transmissão de conhecimentos, mas como a produção de uma consciência reta. Isto significa desenvolver a capacidade para deci-sões próprias conscientes – uma maioridade de consciência. Maioridade significa tornar consciente ou, então, racionalidade, entendida como consciência da realidade, que inclui um momento de adaptação, pela qual o educando é preparado para encontrar o seu caminho no mundo, mas que se torna problemático quando a educação se reduz a uma questão de adaptação, de produzir um well adjusted people, que reproduz inclusive o que a realidade tem de má. Uma educação racional teria que ser capaz de reunir adaptação e resistência. Por isso racionalidade significa maisdoque asimples capacidade formal de pensar. Consciência e capacidade de pensar significam, mais profundamente, capacidade de fazer experiências com o pensamento. Esta identificação entre educação e experiên-cia termina num identificar-se com uma educaçãopara a maioridade, mas também com uma educação para a imaginação ou, nas palavras de Goethe, com uma educação para a originalidade.

Um tal sentido artístico de educação, de um indivíduo capaz de plasmar a si e seu mundo pela capacidade de pensar dista de dois extremos: de supor que a autonomia aí pensada seja produto de uma razão pura ou de um espírito absoluto que não leve em conta a realidade – conquanto só pelo pensamento se possa determinar uma prática correta – e, de outro lado, de supor que a educaçãoconsista num darwinismo que vê seu maior êxito na sua capacidade adaptativa ao mundo dado desde a mais tenra infância. Uma tal concepção adapatativa já não funciona tampouco como educação para o trabalho. O sim-ples adestramento torna-se insuficiente num mundo em acelerada mudança, que requer uma capacitação para a flexibilidade, para uma conduta madura e crítica. Numa tal situa-ção a capacidade de pensar para reorientar-se no mundo torna-se fundamental. Ou, como dizia Adorno, esta combinação de treinamento imediato e horizonte de orientação é algo que praticamente ainda falta em toda a nossa formação profissional ulterior.

Uma outra forma de glorificação da heteronomia, que torna a questão da maioridade um problema mundial, é a da educação autoritáriam como Adorno pôde verificar durante um estágio na então União Soviética. Logo, esta questão é um fenômeno que transcende os sistemas políticos. Infelizmente, lamenta Adorno, a literatura pedagõgica, em sintonia com um mundo que pede uma educação para a menoridade, dá mais importância ao autoritarismo do que à questão da maioridade. A autonomia, porém, não substitui nem ex-clui a autoridade.Diz Adorno que o momento da autoridade é pressuposto como um momento genético do processo da maioridade, do qual, porém, não se pode fazer uso abusivo. A presença da autoridade do professor tem que se fazer sentida pelo aluno como um guia para a sua própria emancipação. O professor detém uma superioridade inicial, que não pode ser subestimada mas que se cumpre quando o aluno aprendeu a lição, isto é, sabe continuá-la por si. Isto significa que não pode haver nenhuma verdadeira escola sem professor, mas que, por outro lado, o professor tem que ter clareza de sua tarefa principal consiste em tornar-se supéfluo. A autonomia, assim, é compatível com aautoridade, mas não com o autoritarismo e com a dispensa prematura de autoridade, levando a uma maioridade aparente. O que remete à questão da co-gestão escolar, que tanto pode constituir-se numa fachada ilusória de maioridade, denominada por Adorno de brincar de autonomia, como pode, se bem conduzida, despertar uma forte motivação de aprendizagem.

Mas como falar de educação para aautonomia, para a criatividade, para a participação consciente e para o pensamento próprio num mundo que prima pelo culto da menoridade, da adaptação, da heteronomia e da babárie em todas as suas formas de agressão e agessividade, a ponto de haver pensadores que acham que se uma vez vencesse apaz no mundo, o homem teria de inventar outras formas de agressividade em substituição às guerras? (Coisas como, por exemplo, o esporte de competição).

Adorno adverte contra qualquer tentação de otimismo, enfatizando o perigo que corremos, simplesmente pela razão de que não somente a sociedade, em sua forma atual, mantém os homens menores, mas precisamente porque toda tentativa séria, de movê-los para a maioridade, está exposta a incríveis resistências, e porque tudo que não presta no mundo encontra logo seus loquazes advogados, que querem provar ao outro que justamente isso que se quer já está superado há tempos, ou não é mais atual, ou é utópico. Por isso, a vontade de mudança tem de partir do reconhecimento da própria fraqueza.

Aprendamos de vez esta lição e admitamos que a autonomia é o término distante e o sempre a caminho do processo educativo. Se a autonomia é o sentido da educação, ela se apresenta como uma idéia prática que nos exige moralmente.

Aspecto fundamental é o vínculo entre democracia e autonomia. A maioridade é uma exigência da democracia. Nem a democracia pode funcionar sem sujeitos autônomos, nem a maioridade pode exercer-se fora de uma sociedade livre ou esclarecida. Mas, por acaso, vivemos numa sociedade esclarecida? Kant, de uma forma não resignada, respondera que não (viveríamos, todavia, segundo ele, numa época em vias de esclare-cimento). Para Adorno, hoje, tornou-se difcil dizer que vivemos numa época em vias de esclarecimento, porque nenhum homem na sociedade atual pode existir eetivamente de acordo com a sua própria determinação. O problema crucial da maioridade converte-se então na questão de como a gente pode opor-se a essa institucionalização da heterono-mia. O mecanismo da menoridade tornou-se planetário, como uma autonomia ao avesso: “o mundo quer ser enganado”, dizia Adorno. Uma crítica imanente tem que tornar isso claro, já que nenhuma democracia normal pode permitir-se ser contra o esclarecimento.

Toda teoria da educação de Adorno parece-se com um aggiornamento do texto de Kant – Que é o Esclarecimento? Segundo Kant, o esclarecimento é a tomada de consciência de uma menoridade de que se tem culpa. Essa é uma culpa não de tipo proposital, como um crime, mas do tipo da omissão, que como tal pode ser-nos imputada. A culpa que o Escla-recimento lhe atribui é a da falta de ousadia e a preguiça de não pensar por si próprio, sem a direção de um Outro. Por preguiça e covardia o homem prefere o tutoramento e a menoridade à maioridade, em relação à qual Kant tomou como lema uma frase de Horácio: “Ousa saber!” O Esclarecimento significa a coragem para dar opasso para a maioridade, que os tutores e o mundo consideram arriscado.

Que essa tarefa de esclarecer-se, como passo para a autonomia, tem um sentido moral pode ver-se tanto a partir do contexto dos versos de Horácio, do qual Kant tirou o seu lema, como também a partir da sua obra Doutrina da Virtude. Aí fica claro que a autono-mia não se identifica com algo que o homem quer espontaneamentei, num sentido natu-ral, como quando busca por si a felicidade; mas tem o sentido de uma tarefa, no sentido de que ele deve buscar a sua liberdade e o desenvolvimento de suas aptidões, sem as quais não pode optar racionalmente por umaforma própria de vida. Nas palavras de Kant, é-lhe um dever conseguir pelo seu esforço elevar-se sempre mais da rudeza de sua natureza, da animalidade, à humanidade, unicamente pela qual ele é capaz de estabelecer-se fins; completar a sua falta de saber pela instrução e corrigir os seus erros; e isto não apenas a razão técnico-prática lhe recomenda para seus fins ulteriores, mas a razão moral-prática ordena-lhe incondicionalmente e torna-lhe este fim um dever, para tornar-se digno da humanidade que o habita.

Em acordo com esta concepção da razão moral como fundamento do dever de trabalhar pela autonomia está aquilo que Adorno acrescenta a uma observação feita por Hellmut Becker (de que “reflexões e racionalidade não são por si nenhuma prova contra a barbá-rie”). A isto Adorno propõe não tomar a reflexão in abstracto, que como tal pode servir tanto ao cego domínio quanto ao seu contrário. Acrescenta que “estas reflexões têm que ser elas mesmas transparentes em seu fim humano”. O fim humano vincula-se à razão moral-prática. Uma razão técnica e neutra não está comprometida com fins humanos.

Os equívocos a que interpretações do Iluminismo têm levado não tomam em conta essa diferença. E levam a perguntas como a segunte, colocada por Salinas Fortes: “Ou será, como diria um nouveau philosophe, desses do nosso século mesmo, que não estaria nos sonhos de dominação racional dos homens do Iluminismo já presente o germe nefando do totalitarismo? Talvez. Ou ainda: não seria a própria formulação desse ideal emancipatório, sob a égide de uma Razão dominadora, uma nova mitologia ilusória e perigosa trazendo necessariamente em seu bojo consequências desastrosas?” Kant, afi-nal, fundou sua concepção de uma razão crítica para mostrar que essa razão dominadora não faz parte do conceito de razão estrita, centrada na liberdade, e que como tal não é nem arrogante nem dominadora, mas democrática. Foi, antes, a crença nesse sentido de razão humana que levou Salinas a escrever no início de seu livro: “Revalorizar o homem significa antes de tudo encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono de seu próprio destino; é esperar que cada homem, em princípio, pense por conta própria”.

O SEGREDO DA IDÉIA DE EDUCAÇÃO

Segundo Kant, na idéia de educação “esconde-se o grande segredo de perfeição da natureza humana”. Talvez ninguém tenha entendido melhor a educação do que Kant, porque detectou o seu segredo. Este segredo, não mencionado aí textualmente, é a idéia de autonomia humana. Podemos dizer que esta idéia é capaz de integrar os diversos momentos da educação que ele detalhou: a disciplina, a cultura, a civilização e a moralidade, fundando-os neste último momento. Porque é pela moralidade que o homem pode conceber-se como fim para si próprio, capaz de pela razão dar um sentido a sua própria vida.

Quero chamar a atenção para o aspecto de universalidade e de senso crítico contido no termo “idéia”, para mostrar também que Kant pensou a educação com maior senso de realidade do que Rousseau, que inspirou fortemente sua teoria. Kant deu extraordinária importância à vinculação entre razão e experimento educacional. Além disso, não achou sua concepção menos correte ante os obstáculos, que de modo algum impedem a sua realização. As crianças devem desde o início aprender, para além de amar os outros, a desenvolver disposições cosmopolitas. Ou seja, o interesse que elas desenvolvem para consigo e para com aqueles em cuja companhia cresceram tem de incluir um interesse pelo Bem da humanidade. “Elas devem alegrar-se com o sumo bem do mundo, ainda que ele não inclua nenhuma vantagem à sua pátria ou ganho próprio”. Ao senso de interesse pelo bem da humanidade vincula-se o despertar de um senso crítico, no sentido teórico de conhecimento social e no sentido prático de agir em favor dos que são vítimas das contingências da sociedade. “Deve-se mostrar ao adolescente que a desigualdade dos homens é uma instituição que surgiu da busca de vantagens de um homem sobre outro. A consciência da igualdade dos homens, aolado da desigualdade civil, pode ser-lhe ensina-da pouco a pouco”. Que esta idéia de educação, portanto, não é utópica no sentido pejorativo do termo, não impede que seja classificada de utópica em seu sentido positivo: que ela nos ensina a medir-nos, não em relação a outros homens, despertando com isso sentimentos de inferioridade ou superioridade, mas em relação a um parâmetro absoluto, como são os conceitos da razão, funcionando como arquétipos ou originais, despertando sentimentos como a humildade, que “nada mais é do que uma comparação de seu valor com a perfeição moral”.

A plausibilidade deste ponto de partida depende da justificabilidade do termo “idéia”, na concepção da educação como idéia. A idéia é a representação específica de um projeto de razão. Enquanto o entendimento produz categorias com as quais compreende a realidade dada, a razão concebe a prática inexistente, mas que pode e deve existir, através de idéias.Uma idéia contém a representação de uma perfeição prática. “Uma idéia não é senão o conceito de uma perfeição que ainda não se encontra na experiência”. Que ela ainda não se encontre nesta significa que ela ainda pode vir a existir na mesma, desde que seja concebida corretamente, isto é, de acordo com as faculdades humanas. Neste sentido a idéia é praticamente verdadeira. As ações ou regras que aseguirem poderão ou, segundo o caso, deverão passar a existir. Os exemplos de Kant são os da idéia de uma república regida segundo regras de justiça e aidéia de uma educação como desenvolvimento de todas as disposições naturais do homem. Podemos entender o que subjaz a essa concepção, de um desenvolvimento dessas disposições, com base numa interpretação que Kant fez do princípio supremo da ética estóica: “Vive em conformidade com a natureza!” Viver em conformidade com a natureza significa; não viver de acordo com os instintos da natureza, mas de acordo com a idéia que a funda. Viver de acordo com uma idéia significa conceber racionalmente esse fundamento e adequar sua vida a essa representação não dada da razão. Pensar uma idéia como fundamento da natureza, como as disposições naturais que a educação deve desenvolver, significa também perguntar pela sua verdade: em que medida a natureza corresponde a essa idéia, isto é, pode desenvolver-se em sua direção?

A forma de a natureza realizar-se no homem é a razão. Em decorrência disso cabe à educação a tarefa essencial do desenvolvimento da razão, a partir da qual o homem pode realizar-se autonomamente. Ao homem não bastam os instintos, graças aos quais os animais realizam-se espontaneamente segundo leis da natureza. Os animais forma cuidados por uma razão estranha a eles. “Mas o homem necessita uma razão própria. Ele não tem nenhum instinto e tem que fazer ele mesmo o plano de sua conduta”. Ou seja, para que o homem alcance seu próprio destino, necessita de um conceito desse destino, isto é, daquilo que bom para ele e a partir de si mesmo. O modo de aeducação cooperar com esta conquista da capacidade de autodeterminação da própria vida consiste em submeter a natureza humana a regras, pelas quais ela vaise cultivando, isto é, alargando suas inclinações; vai se disciplinando, isto é, impedindo que ele proceda de maneira bárbara e, enfim, moralizando-o, isto é, buscando fins que possam contar com o interesse dos demais. Este submetimento, inicialmente exterior, da natureza humana a regras signi-fica que uma geração educa a seguinte. Para que ela, no entanto, tenha êxito e não se torne heterônoma, tem de exercer-se com uma consciência esclarecida, no sentido deque lhe cabe ensinar o aluno a aprender a pensar, o que tem a ver com uma forma de proceder segundo princípios da razão, dosquaisbrotam todas as ações, que são originalmente determinações racionais de nossa vontade.Pertence ao conceito de ação asua vinculação com um pensamento próprio, pelo qual a pessoa concebe de uma forma original o que quer fazer, sem imposição externa de sua forma de vida.

A educação para a capacidade de pensar é a fórmula pela qual se compreende a base de uma educação para a autonomia, e é a razão pela qual a questão do esclarecimento está presente em todas as obras da filosofia crítica de Kant. O esclarecimento, como capacida-de de servir-se de sua razão sem adireçaõ deum outro, opõe-se ao adestramento, cujo termo alemão segundo Kant provém do inglês to dress (vestir). O adestramento envolve, se não um nível animal de desenvolvimento, uma simples fachada de educação. Pois “com o adestramento ainda não se conseguiu nada; trata-se sobretudo de que as crianças aprendam a pensar. Este culmina em princípios, dos quais todas as ações brotam”. A in-sistência neste ponto deve-se a que o esclarecimento como forma de pensar autônomo tem um significado realmente muito maior do que aparenta, na medida em que a capacidade de pensar torna-se princípio da prática, já que a prática brota de idéias como projetos racionais de vida humana.

A tarefa da educação comensura-se com a vida humana, como parte da ação pela qual o homem enfrenta os obstáculos jamais superáveis, hoje ainda mais desafiadores, contra o seu próprio vir-a-ser humano. “O homem só pode tornar-se homem pela educação”. Assim sendo, pergunta-se o próprio Kant: “Até quando deve durar a educação?” E ele responde: “Até o o momento em que a própria natureza determinou que o homem mesmo a conduza.” Diante disso, poderíamos dizer que a educação tem que ter a percepção dos seus limites, que são os limites domomento em que alguém se converte de objeto em sujeito da educação. Al lidar com seres conscientes de sua liberdade, ela, no mínimo, tem de mudar seus métodos, de transformar o ensino numa paulatina participação do aluno na determinação do processo em que ele se encontra envolvido. Mas como na sociedade tudo tende a conspirar para manter os homens na menoridade, o último estágio da educação, que deveríamos ter sempre diante dos olhos, econtra-se sempre muito distante. Se aeducação ficar apenas nos seus estágios prévios da disciplina, da cultura e da civilização, sem se preocupar em ir além deles, buscando criar sujeitos que se autode-terminem, ela se nega a si própria. Sob este aspecto, Kant em certos momentos foi muito pessimista, como ao escrever: “Vivemos no momento do disciplinamento, da cultura e da civilização, mas nem de longe ainda no momento da moralização. Na situação atual dos homens podemos dizer que a felicidade dos Estados cresce com a miséria dos homens”. O perigo de uma educação que não dá o último passo é que ela se torne uma educação autoritária, para o adestramento, para a adaptação e para a dominação, naquele sentido desvirtuado de uma razão tecnocrática. Mas mesmo que essa educação para a autonomia não fosse praticada, isto não a invalidaria como idéia correta de educação, porque a razão não se caracteriza pela reprodução do que é, e sim, pela produção do que ela concebe como devendo-ser, sobre a base de princípios de liberdade, justição e desenvolvimento das capacidades humanas. O que deve-ser guia-se por aquilo que os homens de um ponto de vista prático-objetivo querem como o melhor para si, sem cuja liberdade e vontade eles nada são.

A razão, como opensamento, não é algo abstrato: ela é prática e ativa, lutando sob a forma da virtude contra os obstáculos que enfrenta para estabelecer-se. O homem não conquistaria sua racionalidade sem essa luta, da qual a educação faz parte.O homem não é um ser moral por natureza. “Ele torna-se um ser moral quando pelasua razão eleva-se aos conceitos de dever e de lei”. Não se trata de conceitos estranhos, como o de uma lei que o coagisse externamente. Isso podeocorrer nas fases preliminares da educação, em que o aluno é tutorado. Ao nvel de uma educação esclarecida, o homem segue leis que ele mesmo por sua razão se dá, ou às quais pode dar seu livre assentimento. Se a educação preparar o homem para a sua autonomia, todas as heteronomias que ele en-frentar num mundo que tenta subjugá-lo e mantê-lo em sua menoridade, não serão obs-táculos intransponveis, contanto que aeducação não o ensine a resignar-se perante elas e não o converta em instrumento para fins estranhos.

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