Em meu último artigo discuti o papel contramajoritário defendido
para o Supremo Tribunal Federal (STF) por alguns de seus ministros, como forma
de conferir efetividade à Constituição em matéria de direitos fundamentais e
assegurar os direitos das minorias contra Parlamentos e governos eleitos com
base na regra da maioria. Terminei indagando se seus ministros são mais
preparados do que parlamentares e governantes para filtrar demandas sociais.
Suscitada por uma nova e talentosa geração de constitucionalistas, que
enfatizam a força normativa dos princípios jurídicos e defendem a ponderação
como método de interpretação das leis, essa discussão envolve questões
importantes, das quais destaco quatro.
A primeira diz respeito às
implicações institucionais da criação judicial do direito. Quando dispositivos
constitucionais têm a forma de princípios, que são indeterminados por natureza,
como definir critérios minimamente objetivos para interpretá-los, conjugando
legitimidade com segurança do direito? Ao ampliar os poderes político-normativo
dos juízes, as intervenções extensivas permitem aos tribunais expandir seu
campo de atuação, o que tende a criar tensões institucionais.
A segunda questão trata do
alcance da representatividade do regime democrático. Por causa do poder
econômico no financiamento eleitoral, de pressões corporativas e da apropriação
de verbas públicas por certos grupos, esses sistemas não representariam a
vontade majoritária da população – entendem os neoconstitucionalistas. Com isso
os partidos estariam cada vez mais desconectados da sociedade civil, levando-a
a encarar a política com indiferença e desconfiança. Assim, ao invalidar um ato
do Legislativo, o STF neutralizaria os vícios de representatividade agindo de
modo contrarrepresentativo – concluem.
A terceira questão parte do
déficit democrático da representação política. Segundo os
neoconstitucionalistas, a crise de legitimidade do Legislativo permitiu a
expansão do Judiciário, levando-o a se tornar mais sensível aos anseios sociais
do que os canais encarregados de promover agregação de interesses e tomar
decisões coletivas. Assim, a sociedade se identificaria menos com os
parlamentares e mais com os magistrados, que seriam imunes ao populismo.
A quarta questão trata do que
chamam de “substantivação” do conceito de democracia. Para eles, a democracia
não se limita à regra de maioria e ao papel legislativo dos Parlamentos,
implicando um aumento do peso político do Judiciário. Se os Parlamentos são
legitimados pelo voto, a Justiça seria legitimada por um processo discursivo ao
fim do qual são explicitadas as razões das decisões tomadas – afirmam. O
problema é que, ao recorrer muitas vezes a argumentos extrajurídicos e a juízos
de oportunidade não deduzidos das leis interpretadas, os juízes podem construir
regras distanciadas das diretrizes gerais da ordem legal. E quanto mais se
apegam a princípios e doutrinas muito amplas, mais tendem a extravasar os
limites dos casos concretos sub judice. Com isso o Judiciário deixa de
operar com base na legalidade e imparcialidade, convertendo-se numa instituição
que decide com critérios políticos – e a politização judicial implica
parcialidade e protagonismo.
Esses argumentos são polêmicos,
por entreabrirem uma visão romantizada das virtudes da magistratura e da
Justiça. Faz sentido a afirmação de que juízes podem ter, com base no título de
Excelência, mais representatividade que quem ascendeu a um cargo legislativo ou
executivo com base no voto popular? É aceitável e democrático que um grupo de
juízes possa tomar decisões morais e fundamentais em nome de todos ou criar leis
que a maioria dos cidadãos terá dificuldades para mudar? Por mais problemas de
representatividade que apresente, o Legislativo permite críticas, protestos e
vetos, atuando como um mecanismo de desocultação, vigilância e impugnação. São
características opostas às do Judiciário, cujos membros sacralizam o princípio
da autoridade, cultivam um discurso incompreensível para os leigos e não
admitem críticas. O boneco que imitava um ministro do STF, por exemplo, foi
classificado pelo presidente da Corte como “inaceitável atentado à
credibilidade do Judiciário”.
Alguns neoconstitucionalistas
advertem para a arrogância a que os magistrados estão sujeitos. Mas o fazem com
indulgência, lembrando que, enquanto parlamentares têm mandatos e muitas vezes
negociam favorecimento a interesses particulares em troca de financiamento
eleitoral, juízes não precisam fazer concessões, por terem garantia da
vitaliciedade. Alegam ainda que, como o acesso à corporação se dá por concurso,
os juízes viriam de diferentes segmentos sociais, o que lhes daria a
representatividade para interpretar melhor a vontade da sociedade.
Esses argumentos pecam pela
excessiva idealização da magistratura, como se seus membros fossem anjos,
arcanjos e querubins. Dizer que o STF é essencial para a democracia é correto.
Alegar que ele pode corrigir omissões dos outros Poderes também é correto.
Afirmar que sociedades complexas exigem formas abertas de raciocínio jurídico,
estimulando os juízes a incorporar em suas decisões o respeito ao princípio da
dignidade humana, é correto.
Reconhecer que o STF assume algum protagonismo
quando enfrenta problemas de antinomias jurídicas é aceitável. Mas enfatizar
que interpretações contramajoritárias e contrarrepresentativas dão
“potencialidades civilizatórias” aos juízes é temerário. Principalmente se
lembrarmos as conversas telefônicas em que um ex-presidente da República
cobrava alinhamento político de ministros que indicou para o STF ou do número
de magistrados que o CNJ já afastou por desvio de função. Entre os neoconstitucionalistas,
há quem diga que são poucas as decisões do STF que ultrapassaram a “fronteira
aceitável” do bom senso e do respeito à Constituição. Não é o número dessas
decisões que preocupa, e sim os precedentes abertos.
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