"Os Direitos Humanos positivados com a Constituição Federal em
1988 foram produtos de intensa luta por parte de populações historicamente
oprimidas, como operários, camponeses e povos originários, não se tratando,
portanto, de dádivas do Estado ou do sistema econômico. Essa circunstância,
entre outras, explica a resistência que as elites sempre tiveram ao texto
constitucional, enxergando-o como entrave a seus projetos expansionistas.
Daí que, já nos primeiros anos da década de 1990, teve início o
processo de aprovação de emendas (ou remendos?) constitucionais
(eufemisticamente denominados de “reformas”) e de diplomas legislativos que
objetivaram adaptar a ordem jurídica a projetos políticos e econômicos
governamentais, apoiados pelo grupos hegemônicos do capitalismo globalizado que
promoviam, em todo o mundo, a desregulamentação da economia e o desmonte do
Estado. Tal processo consagrou uma verdadeira inversão de papeis, pois, como sabido,
no Estado de Direito cabe ao governo promover suas ações adaptando-as ao
ordenamento vigente (e não o contrário, como efetivamente tem ocorrido). Tudo
isso sob o silêncio de entidades oficiais que deveriam vigiar o cumprimento da
Constituição.
Importante notar que esse quadro perdurou até mesmo nos governos
do grupo político que alcançou a Presidência da República sob o discurso da
crítica ao neoliberalismo. A promessa de promoção de políticas públicas via
participação intensa da sociedade civil, em linhas gerais, cedeu lugar à
continuidade da ocupação do Estado pelos conglomerados empresariais,
possibilitada, mais uma vez, por novas alterações normativas.
O presente ano de 2015 parece mudar esse quadro. O processo de
mudanças constitucionais e infraconstitucionais casuístas não se findou, mas
agora ocorre para obstar as ações do governo e para concretizar projetos
defendidos por grupos opositores (ainda que aliados a partidos supostamente da
base governista). É assim que se deve entender a verdadeira avalanche
ultraconservadora que vem do Congresso Nacional, ameaçando soterrar, ainda
mais, as conquistas constitucionais dos grupos historicamente dominados.
A
aprovação ou a mera tramitação de projetos legislativos, como a reforma
política que privilegia o poder econômico, a ampliação da terceirização nas
relações de trabalho, o avanço da proposta de redução de maioridade penal e de
ampliação de internação de adolescentes bem como a retirada de poderes da FUNAI
para a demarcação de terras indígenas, dentre tantos outros, são exemplos
concretos desse quadro opositor. E o atual governo parece beber do seu próprio
veneno: antes liderava as modificações da ordem jurídica a seu favor e agora
sofre as mesmas mudanças, muitas delas, contrariamente a seus interesses políticos.
Independentemente de se tratar de processo favorável ou
contrário aos atuais grupos que ocupam as estruturas governamentais, o fato é
que se continua a procurar a adaptação da ordem jurídica a ambições políticas e
econômicas, quando, como se disse, tais ambições é que deveriam adaptar-se às
leis e à Constituição. Na essência, a inversão perdura, em franco prejuízo às
populações vulneráveis, especialmente as mais pobres.
O projeto de construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, estampado no artigo 3.o, inciso I, da Constituição Federal, merece
respeito. Sob pena de violar a Lei Maior, qualquer mudança normativa não pode
retirar o país do caminho da solidariedade para inseri-lo de volta no percurso
do Estado policial e da expansão do capital a todo custo, na forma que
prevalecia sob a ditadura civil-militar pós-1964.
Por tudo isso, uma lembrança e uma advertência. O instituto da
cláusula pétrea foi criado na Alemanha pós-Segunda Guerra para evitar que
mudanças constitucionais casuístas levassem o país de volta ao nazismo. No
atual momento de aprovação ou tramitação de projetos normativos que legitimam
práticas verdadeiramente fascistas contra a parcela mais vulnerável da
população, que se contrapõem ao projetado no citado artigo 3.o, inciso I, em
breve o Supremo Tribunal Federal (STF) terá de ser chamado para mostrar se tem
as necessárias coragem e determinação de se colocar como guardião de fato da
Constituição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário