quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Promessas

Prometer o diabo a fim de alcançar os mais variados fins parece ser uma das mais intensas e trágicas das sinas humanas. Seria algo universal, situação que não variaria quer no eixo do tempo quer do espaço. Em qualquer latitude do planeta, ou em indiferenciado momento histórico, lá estarão as promessas impregnando a vida humana, provocando confusão, ressentimentos, expectativas, alegrias e tristezas. Nem o Eterno ficou livre de tais injunções.O Senhor garantiu de pés juntos, naqueles distantes tempos bíblicos, que daria aos filhos de Abraão, de Isaac e de Jacob a posse e a propriedade de um lugar maravilhoso onde manaria eternamente o leite e mel (ledo engando, pelo que se sabe do inferno em que se tornou o Oriente Próximo). 

Tal lugar só não seria melhor que o próprio jardim celestial (exceto, sem dúvida, o Senado brasileiro, este sim, superior ao paraíso, pois não se careceria de morrer para nele se adentrar, conforme afiançou Darcy Ribeiro). O saudoso professor e antropólogo, aliás, deve estar, hoje, gozando das refinadas delícias da eternidade, depois de ter usufruído por curto período da bem aventurança senatorial em Brasília. Em vista de seu notório amor pelas mulheres, Darcy, certamente, poderá ser encontrado na seção muçulmana do paraíso, qual pinto no lixo, cercado para todo o sempre de seis dúzias de gentis donzelas. 

Não se pense, entretanto, que somente a divindade superior seja capaz de tentar seduzir os homens com inefáveis acenos, acicatando-lhe os desejos com tentadoras ofertas. Tal estratégia para se alcançar objetivos, lícitos ou não, puros ou impuros, verdadeiros ou falsos, não é desconhecida pelo demônio. 

Após ter prometido o que prometeu ao Divino Mestre - na famosa tentação da montanha - sendo devidamente escanteado, o demônio se vingou multiplicando-se em infindáveis partículas que se encarnaram nos mercadores de ilusões de todos os tempos, seres cuja manifestação mais perfeita e acabada são os atuais magos da propaganda e da publicidade.

Seria injustiça se esquecer do destacado lugar reservado aos políticos, profissionais celebrados por Dante na Divina Comédia, obra prima da literatura universal. Instado pelo papa Bonifácio VIII, ávido por colher um bom conselho sobre como derrotar os cardeais Colona (seus inimigos figadais homiziados no castelo de Palestrina), um vulgar aventureiro, Guido de Montefeltri, assim lhe recomendou perfidamente: "Muita promessa e pouco atendimento". Mal sabe a elite política brasileira que seu entranhado costume (fazer promessas e delas se esquecer quase que incontinenti), já fora sintetizada naquelas tão escassas palavras do genial poeta florentino.

No cotidiano singelo dos homens comuns as falsidades compõem também parte significativa da nossa precária existência. Nem no amor (de fato, nele notadamente), as promessas não cumpridas deixam de se fazer presente. Jacob, aquele mesmo já referido acima como destinatário dos acenos da Divindade, foi vergonhosamente iludido pelo sogro, que lhe prometera Raquel mas lhe entregou Lia -  a dos olhos remelosos - usando de artifício que ilaqueava sua boa fé - dando-lhe um esfarrapada e mal costurada desculpa para não cumprir a promessa feita. Verdade que tal evento, tão contaminado de malícia, propiciou a Camões a oportunidade de redigir uma das mais belas páginas da lírica universal (em uma das páginas de Borges consta que os Deuses imputam desgraças aos homens, para permitir aos poetas temas a serem cantados).


Raquel


"Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por premio pretendia.


Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.


Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;


Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!"


O tema da infidelidade ou desventura amorosa, aliás, não é estranho aos poetas populares. Quem nunca ouviu os lamentos dos que se consideram injustiçados, traídos ou enganados? Lupicínio Rodrigues foi um mestre no assunto. Seu "Nervos de Aço" é antológico. Também Orlando Silva se imortalizou, entre outras canções, pela sugestiva "Aos pés da Santa Cruz" (na verdade o nome original era "Aos pés da Cruz"), de autoria de Marino Pinto e Zé da Zilda, que pode ser conferido em http://youtu.be/k6BHozYoY2I, e cuja letra segue abaixo:


"Aos pés da Santa Cruz você se ajoelhou
Em nome de Jesus um grande amor você jurou
Jurou, mas não cumpriu, fingiu e me enganou
Pra mim você mentiu
Pra Deus você pecou
O coração tem razões que a própria razão desconhece
Faz promessas e juras, depois esquece
Seguindo este princípio você também prometeu
Chegou até a jurar um grande amor
Mas depois esqueceu".


Promessas parecem ter a ver com as ilusões permanentes que impregnam a vida humana. Talvez esta seja a única, trágica e insuperável verdade. Se somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos, como apontava Shakespeare, e se o homem pode ser definido como uma máquina de sonhar (Lacan), melhor permanecer no doce torpor do sono em que estamos mergulhados. Quem nos dirá que a suposta lucidez dos que acordam não é o outro nome de pesadelo? 

Ainda bem que Mário Lago e Custódio Mesquita nos deixaram uma recomendação: Nada Além!, que pode ser conferida em http://youtu.be/_358PNNVDDc

"Nada além
Nada além de uma ilusão
Chega bem
E é demais para o meu coração
Acreditando em tudo que o amor
Mentindo sempre diz
E vou vivendo assim feliz
Na ilusão de ser feliz
Se o amor
Só nos causa sofrimento e dor
É melhor
Bem melhor a ilusão do amor
Eu não quero e não peço
Para o meu coração
Nada além de uma linda ilusão".


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