quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Revoluções tecnológicas e impactos econômicos - parte II

"As revoluções tecnológicas e os impactos econômicos (Parte II")

“Como dissemos, a manobra de transição que consiste em reduzir as horas individuais de trabalho tem limites estreitos e rígidos. Portanto, a preocupação com a manutenção do crescente exército de desempregados estruturais deve ser assumida pela sociedade, isto é, pelo Estado ou por suas instituições descentralizadas. Pois o Estado, enquanto forma de controle do homem sobre as coisas e não sobre outros homens, subsistirá inclusive na sociedade muito mais desenvolvida do futuro. A tese oposta é apenas um sonho anarquista cujo caráter absurdo pode ser facilmente demonstrado. Em todo caso, estas idéias nada têm em comum com o marxismo. A descentralização do Estado e a autonomia administrativa dos cidadãos em todos os níveis é outra questão. O problema não é abstrato do ponto de vista de uma futurologia social realista; tampouco é abstrato do ponto de vista do que deveria ser feito hoje a este respeito. A título de exemplo mencionarei The Triple Revolution, memorando preparado por um comitê especial do The Santa Barbara Center of the Study of Democratic Institutions em 1964, isto é, há quase meio século. O documento foi elaborado por um comitê ad hoc formado por 37 pessoas, entre as quais vários prêmios Nobel, representando diversos grupos sociais e escolas de pensamento. A fim de evitar mal-entendidos, deve-se ressaltar que seus membros mais “esquerdistas” eram Norman Thomas, líder do Partido Socialista, e Erich Fromm, psicólogo e filósofo, que em alguns aspectos se aproximava do marxismo, mas que não era marxista nem se considerava como tal. O memorando, dirigido ao então presidente Lyndon Johnson e aos líderes dos partidos Democrata e Republicano, é, a meu ver, um documento de importância histórica pela amplitude de sua perspectiva e pela profundidade de sua análise de fenômenos que apenas hoje podem ser avaliados em seu pleno significado, o que testemunha a clarividência dos seus autores... Pessoalmente, devo ressaltar que contraí uma “dívida” intelectual com o conteúdo do documento. Desejo agora aludir apenas a uma das idéias do memorando que tem uma relação direta com as nossas considerações. Os autores partiram da revolução cibernética (a microeletrônica e a automação ainda não eram conhecidas naquela época), e chegaram à conclusão de que a riqueza material da sociedade crescia rapidamente e era acompanhada por uma queda da demanda de mão-de-obra, substituída pelas máquinas. Em resposta à questão sobre como se poderia garantir a subsistência deste exército de desempregados, os autores do documento escreveram: “instamos a que a sociedade através das instituições jurídicas e governamentais apropriadas, se comprometa sem reservas a proporcionar, por direito, um rendimento adequado a todo indivíduo e a toda família”.Esta parece ser a única solução racional para o nosso problema: se a sociedade se enriquece com a nova revolução industrial, consequentemente ela deve arcar com os custos do incremento do desemprego estrutural derivado desta revolução. Mas como pode toda a sociedade adquirir os fundos necessários para enfrentar estas novas obrigações? Em minha opinião, não há outro caminho se não o de prosseguir aplicando aquelas medidas que, como vimos, deverão prevalecer durante o período de transição: uma nova e mais profunda distribuição da renda nacional, que será certamente muito superior a qualquer outra conhecida. Isto todavia só poderá ser realizado mediante a redução de uma parte da renda nacional que corresponde às classes proprietárias, ainda que esta redução deva ser relativa, dado que sua participação em termos absolutos, aumentará graças ao rápido aumento da produção e da renda nacional em geral. Ainda que isto não agrade aos exacerbados defensores da propriedade privada, incapazes de pensar de modo racional, trata-se de uma solução sem a qual não há alternativa realista. Existiria apenas a alternativa de a sociedade permitir a inanição das dezenas de milhões de pessoas condenadas ao desemprego estrutural. Mesmo que a sociedade consentisse (com “peso no coração”, é certo, mas em nome de princípios “mais elevados” como a defesa dos direitos civis, entre os quais se acha o direito de propriedade), não pode haver dúvida de que uma tal solução seria rechaçada – e se necessário com armas em punho – pelos “condenados” a morrer de inanição. Na realidade, esta solução não pode ser levada em consideração. E, ao responder aos exacerbados defensores do direito de propriedade, não aludirei a nenhum argumento proposto por qualquer escola de pensamento socialista, mas à encíclica papal Laborem exercens. O autor deste documento, de quem não se pode suspeitar que oculte intenções subversivas, afirma explicitamente que, se necessário, o direito de propriedade pode ser infringido... Tudo isto significa apenas que o socialismo deverá prevalecer necessariamente como resultado da nova revolução industrial? A resposta a esta pergunta depende de como interpretamos o termo “socialismo”.Não se pode excluir a possibilidade de a sociedade do futuro próximo, que será forçosamente muito diferente da nossa, recorrer a medidas econômicas como as que já estão sendo implementadas hoje na Suécia. Sem nacionalizar a indústria e os serviços (com exceção de alguns casos, como, por exemplo, o das estradas de ferro), e sem infringir formalmente o direito de propriedade, o Estado recorre a impostos progressivos, taxando em até 90 por cento as rendas e os lucros dos seus cidadãos e utilizando estes fundos para cobrir seus gastos. Desta maneira, o incentivo à iniciativa privada é preservado, ao mesmo tempo em que uma grande parte da renda nacional é apropriada pelo Estado (acima da renda individual necessária a satisfazer os padrões da vida, segundo o nível histórico das necessidades pessoais). A parte apropriada pelo Estado se destina por outro lado a cobrir todas as necessidades sociais, entre as quais pode ser arrolado o custo de manutenção do exército de pessoas estruturalmente desempregadas que exercem diversas atividades. Isto seria muito diferente do atual auxílio-desemprego, já que consistiria em uma pensão vitalícia cuja quantia poderia possivelmente ser diferenciada de acordo com o caráter e a qualidade das ocupações que teriam estas pessoas estruturalmente desempregadas. O que tornaria ainda mais nebulosa a diferença entre esta pensão e o salário. Isto continua sendo capitalismo?Tudo depende de como definimos este conceito, mas, desde logo, não é capitalismo no sentido clássico. Tanto o problema da propriedade privada quanto – e isto é particularmente importante – o da mais valia se colocam de forma diferente de como aparecem em O Capital de Marx. Ainda que se trate aqui de mais-valia, esta não permanece nas mãos dos capitalistas e à sua disposição, mas passa a ser propriedade social e é utilizada para satisfazer necessidades sociais. Ainda que conservemos o termo “mais-valia” para não nos envolvermos com problemas terminológicos, não devemos esquecer que o conteúdo deste conceito mudou e talvez tenhamos que pagar pela nossa conveniência terminológica o preço de equívocos semânticos. Desejo assinalar aos marxistas “ortodoxos” que Lênin, durante a Primeira Guerra Mundial, considerou um caminho muito concreto e pacífico para se alcançar o socialismo nos países com vizinhos socialistas (como exemplo disto mencionou a Suíça). O Estado compraria as propriedades dos capitalistas e os manteria como administradores de suas antigas fábricas e instituições de serviços, desde que soubessem realizar seu trabalho. Não há aí uma analogia com a situação de hoje acima comentada? Observe-se ainda que a atual revolução industrial é um fator tão forte que este determinado objetivo econômico poderá ser realizado até mesmo num Estado não necessariamente rodeado por países socialistas. Os problemas políticos relacionados a isso serão comentados mais adiante.Obviamente, a nacionalização ao menos da grande indústria, dos bancos e dos transportes de massa seria uma solução mais simples. Com isso estaria assentado o fundamento para a formação social socialista, e o excedente de bens produzidos passaria automaticamente para as mãos da sociedade e de seus organismos, sobretudo o Estado. Se os acontecimentos não seguirem este curso – e, a meu ver, não o seguirão nos países desenvolvidos – então isto será conseqüência dos efeitos negativos dos exemplos dos países do socialismo real, que não souberam nem resolver apropriadamente suas tarefas econômicas nem satisfazer as expectativas políticas relacionadas com o modelo ideal de sistema socialista. Consequentemente, funcionam como contrapropaganda sui generis quando se trata da capacidade do socialismo de resolver problemas que se apresentam atualmente nos países industrializados. A explicação deste fato exigiria uma digressão para se estudar a história da gênese e do desenvolvimento dos países do socialismo real, o que ultrapassaria o marco de nossas atuais reflexões. Pessoalmente estou convencido de que este obstáculo à resolução dos problemas que estamos estudando com base na formação econômica socialista da sociedade não faz senão adiar a aceitação do socialismo, e certamente apresentará um modelo diferente daquele que prevalece hoje nos países do socialismo real. Isto vale tanto para a base quanto, sobretudo, para a superestrutura daquelas sociedades.Neste caso, como definir a forma sistemática da sociedade futura, que não será nem capitalismo nem socialismo tais como os conhecemos até agora? Sugiro que se a denomine de sistema de economia coletivista, já que não me ocorre denominação melhor, embora esteja plenamente consciente da insuficiência da minha proposta. A denominação, de fato, é deliberadamente imprecisa e vaga, mas precisamente por isto permite abarcar as distintas variantes da solução proposta e as diversas quantificações de elementos que traz consigo: economia capitalista privada e economia social coletivista. Em minha opinião, esta é uma vantagem daquela denominação precisamente porque é assim que se apresentará a diferenciação de desenvolvimento nas várias condições. Ao mesmo tempo, a denominação que sugiro compreende o que caracteriza a grande mudança que a atual revolução industrial está produzindo: a infração do “sagrado” direito de propriedade em nome de interesses coletivos gerais. Esta infração se expressa numa nova e dinâmica distribuição de renda nacional em favor das classes sociais que não são proprietárias dos meios de produção.Mesmo no caso de este processo não eliminar por completo a propriedade privada e, consequentemente, deixar um amplo campo para a iniciativa privada – problema que o modelo de socialismo real não resolveu – ele é sem dúvida um passo importante no sentido de um socialismo e de um igualitarismo (relativo) interpretados em sentido amplo. (Cabe observar que o modelo chinês, de abertura econômica em uma sociedade politicamente fechada, talvez possa ser visto como uma resposta ao fracasso do modelo clássico do socialismo real).Esta é uma constatação importante, tanto mais que a evolução no sentido de um modelo de sociedade coletivista abarcaria não apenas as relações de propriedade, mas também as relações derivadas da produção e da distribuição dos bens, o que é uma conseqüência lógica das mudanças na esfera fundamental. Refiro-me à planificação econômica, talvez inclusive em escala mundial, se considerarmos as tendências integradoras da sociedade informática.Ao contrário da apar6encia, a planificação não é algo desconhecido do capitalismo nem alheio a ele. É algo que os organismos estatais fazem indiretamente, especialmente através de suas políticas financeiras e fiscais, mas também diretamente, através das encomendas do Estado às empresas privadas ou através da política econômica dos setores nacionalizados da economia, que são cada vez mais fortes em vários países (exemplos significativos são os casos da Áustria e da França). O estereótipo de um capitalismo de livre mercado deixou de ser válido há muito tempo. É verdade que alguns economistas – Milton Friedman, por exemplo – tendem a rechaçar a doutrina de Keynes, que praticamente pôs fim ao capitalismo de livre mercado, mas estas idéias não encontram confirmação na prática (basta lembrar as conseqüências catastróficas que experiências deste tipo provocaram na política econômica do Chile). O que provavelmente ocorrerá neste campo como resultado da atual revolução industrial pode ser visto como algo de qualitativamente novo. Se o Estado tiver de manter um exército de cidadãos estruturalmente desempregados, ele será forçado a intervir não só na nova distribuição da renda social, a fim de obter os meios financeiros necessários a esta operação, mas também no mercado de bens necessários à manutenção deste desempregados. Em outras palavras, terá também de influenciar a forma de produção e distribuição destes bens a fim de evitar que problemas financeiros transtornem o equilíbrio do mercado.As relações econômicas da sociedade formam um conjunto de elementos inter-relacionados, não no sentido de uma síndrome, mas no sentido de um sistema. O Estado terá de elaborar meios e métodos que permitam um controle da estabilidade geral deste sistema – deixando um amplo campo para a concorrência e a iniciativa privada – em que uma mudança importante na posição de um elemento provoca automaticamente mudanças correspondentes na posição de outros elementos.O fato de os autores do memorando a que me referi antes terem percebido claramente, e ressaltado o caráter novo desta situação, ainda que trabalhassem no mais poderoso dos Estados capitalistas, testemunha sua clarividência e a profundidade das análises que empreenderam. Em The Triple Revolution há uma passagem que diz: “o descobrimento histórico do período posterior à Segunda Guerra Mundial é que o destino econômico da nação pode ser dirigido... A essência desta direção é a planificação. O requisito democrático é a planificação a cargo de corporações públicas para o bem geral... O objetivo será a direção consciente e racional da vida econômica através das instituições planificadoras submetidas ao controle democrático”.Citei esta passagem – contrariando a minha intenção de evitar as citações e a erudição formal – não apenas por seu conteúdo, mas também, e principalmente, pelo fato de o documento em questão proceder dos Estados Unidos e por serem seus autores estranhos a uma orientação de esquerda. Não há dúvida de que a nova revolução industrial está repleta de implicações sociais e nos conduz a novos modos de formação econômica da sociedade. Para estas conseqüências acabamos aqui de chamar a atenção”.

(in, Schaff, Adam. A Sociedade Informática)

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