quinta-feira, 11 de agosto de 2011

"Os Paradoxos do Engajamento"

“A quem procure levar a sério os compromissos programáticos, e viver as ligações entre a transformação da sociedade e a autotransformação do indivíduo, enfrenta hoje dois paradoxos morais.

O primeiro desses enigmas é um paradoxo do poder e da impotência dos ideais. Hegel disse que a única verdadeira tragédia do mundo burguês é a impossibilidade de reconciliar a vida de ação com a vida de pensamento. Mas esse acaba por se mostrar um problema de significado restrito e de solução possível. Tanto o pensamento criativo como a ação transformadora são aventuras humanas que exigem uma mobilização total de tempo e emoções. Com alguma sorte, é possível experimentar períodos de retiro e de engajamento.

Porém, atrás desse falso dilema está um paradoxo mais impessoal e duradouro. As idéias programáticas parecem, ao mesmo tempo, poderosas e impotentes. De um lado, elas assemelham uma retórica sempre disponível para enfeitar, com charmes novos, interesses antigos e preconceitos herdados. Essa amedrontadora elasticidade das propostas costuma acabar, no Brasil, sendo levado ao ponto da caricatura. É que as nossas elites, predatórias e medíocres, especializaram-se nas artes da sobrevivência. Assistem, à difusão das ideologias prestigiosas, como camponeses a verem passar a horda nômade. Confiam em poder acomodar os intrusos, fazendo-lhes as concessões necessárias – quase sempre pequenas ou meramente aparentes – até que eles se esvaiam ou se corrompam. Por outro lado, os intelectuais, sem arrimo em universidades fortes nem em tradições autônomas de pensamento, demonstram dificuldade em escapar ao campo gravitacional das elites – das suas preocupações e predileções. Ainda quando adotam um dos vocabulários internacionais do radicalismo de esquerda, aparentam, muitos deles, estar contentes e acomodados com a sociedade em que vivem e com a vida que levam. Tudo isso contribui para dar à pregação das alternativas a aparência de uma charada irrealista e frívola; e quanto mais radical, mais charada.

Ao mesmo tempo, porém, as idéias parecem ser imensamente poderosas, sobretudo no seu aspecto implícito e negativo de premissas sobre os limites do possível. Nas páginas deste livro, o exemplo mais constante dessa influência constrangedora e liberticida é o efeito das idéias que herdamos sobre as instituições políticas e econômicas – sobretudo as convicções assentadas sobre as formas institucionais que o pluralismo político e econômico pode assumir numa sociedade como a nossa. Essas premissas encontram reforço nas rotinas de vida prática e de discurso que ajudam a reproduzir as instituições estabelecidas e mantêm em forma mumificada as idéias dominantes. Os homens práticos não são apenas os escravos inconscientes de algum economista morto, como quis Keynes; são as vítimas dos preconceitos sobre os limites do possível que suas atividades costumeiras pressupõem. O sistema institucional da sociedade serve de arcabouço a todo um conjunto de maneiras de sentir, pensar, falar, competir e trocar, representando uma profecia que se autoconfirma.

O paradoxo do poder e da impotência das idéias programáticas resolve-se na medida em que as idéias se encarnam em algo tangível que vincule, tanto na causalidade da prática como na ordem da imaginação, o presente que se vive com o futuro que se propõe. Todos somos, numa medida ou noutra, como São Tomé: precisamos, para ter fé, tocar a ferida com nossas próprias mãos. Encarnam-se as idéias, primeiro, em exemplos de ação e inspiração pessoal; depois, em práticas rotineiras de ação e discurso e, por fim, em instituições. A diferença entre as idéias desencarnadas e as encarnadas é muito maior do que a diferença entre grandes e pequenas encarnações. A mesma idéia que parecia inerme e elástica quando reduzida a abstração, ganha definição surpreendente e força inesperada quando traduzida em atos ou práticas que antecipem, ainda que de maneira falha e fragmentária, um futuro alternativo. Por tudo isso, imaginar, e produzir, tais antecipações é dar braços e asas às idéias e usar as coisas pequenas para quebrar as coisas grandes.

Ao lado do paradoxo do poder e da impotência das idéias, há um paradoxo do pessoal e do impessoal na política. A atividade que desafie as convenções da carreira política e as premissas aceitas sobre os limites do possível, precisa deitar raízes em motivações íntimas. Sem isso, não há a energia necessária para enfrentar os obstáculos externos e as oscilações interiores. O cálculo frio jamais levaria o indivíduo a praticar os atos que o poriam nesse caminho;os riscos de catástrofe sempre pareceriam grandes demais e as probabilidades de êxito excessivamente modestas para justificar o indispensável desvio dos padrões de conduta prudente.

Os impulsos pessoais capazes de sustentar as imprudências salvadoras podem inspirar-se na idéia de uma vocação transformadora: a convicções de que a auto-afirmação do indivíduo se realiza por atos que mudem a sociedade. Afinal, esse conceito de vocação transformadora vem a ser apenas uma manifestação específica de uma idéia sobre o trabalho que exerce influência crescente nas sociedades contemporâneas: a esperança de encontrar no trabalho uma experiência que tanto ligue o indivíduo a realidades que ele reconheça superiores a si mesmo, como lhe permita deixar sobre o mundo as marcas da sua própria individualidade. Junto com a idéia do amor como vínculo de aceitação e vulnerabilidade recíproca, essa definição do trabalho como, ao mesmo tempo, auto-expressão e transcendência representa uma das duas grandes promessas de felicidade que o ceticismo generalizado da cultura contemporânea antes fortaleceu do que destruiu.

Mas, por mais sedutora que seja essa idéia do trabalho, ela apenas focaliza motivações mais difusas: ora um desejo de abertura humana mais completa, ora um esforço para ser compreendido e admirado em termos aceitáveis e significativos para o indivíduo, ora, até mesmo, uma tentativa de escapar à confusão, à ansiedade e ao tédio pela aceleração da vida e pela multiplicação dos compromissos e dos vínculos.
O enraizamento da atividade política e transformadora nas complicações da subjetividade parece um luxo narcisista. E, por um outro paradoxo da experiência moral, essa marca de personalismo pode comprometer a própria capacidade da atividade política de dar resposta às aspirações pessoais, deixando o indivíduo preso no mesmo labirinto de subjetividade a que ele julgava escapar. Assim, o atrelamento do impessoal ao pessoal parece, ao mesmo tempo, indispensável e corruptor: uma necessidade e uma irrelevância.

Durante certo tempo, acreditei que a solução a esse paradoxo estivesse na analogia entre os problemas pessoais e os coletivos bem como entre as soluções que se propõem para estes e aqueles. Assim, por exemplo, o esforço do indivíduo para libertar-se das compulsões do caráter se parece com a luta para livrar a sociedade de uma estrutura rígida de divisão e hierarquia. Assim como tais estruturas sociais limitam as oportunidades de liberdade individual e enriquecimento coletivo, assim também seu equivalente num caráter petrificado impede o indivíduo de dar às suas experiências de trabalho e de amor um significado maior e mais duradouro, o significado daquelas duas promessas de felicidade que mais importam ver cumpridas: a promessa de um amor que permita a entrega do amante e o entendimento do amado e a promessa de um trabalho que seja expressivo do agente transformador do mundo. Tanto no tempo biográfico quanto no tempo histórico, procura-se não apenas substituir uma estrutura, caracterológica ou institucional, por outra, mas também descobrir e implantar as estruturas que sejam mais abertas à revisão, deliberada e cumulativa, de si mesmas. Tais analogias, entretanto, são remotas, incompletas e contingentes; geram uma esperança, mas não oferecem uma garantia de resolver o paradoxo do pessoal e do impessoal.

A única solução verdadeira e confiável é o amor. Sejam quais forem os motivos que levem o indivíduo ao roteiro da resistência e do risco, sob a inspiração da fé em alternativas sociais, ele pode acabar por sentir a força atraente das pessoas – indivíduos de carne e osso – que ele encontra no caminho. A emoção resultante dá uma marca pessoal ao que seria, de outra forma, um esforço desumanizante. E abre o indivíduo aos outros – ao imprevisível das suas paixões e aspirações – libertando-o do peso asfixiante de suas preocupações consigo mesmo. Essa ternura, misturada com espanto e esperança, é a salvação, e a sócia insubstituível da inteligência”

(in UNGER, Roberto Mangabeira. A segunda via. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001).

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