quinta-feira, 17 de abril de 2008

VALORES PROCLAMADOS E VALORES REAIS NAS INSTITUIÇÕES ESCOLARES BRASILEIRAS - Anísio Teixeira

1) Duplicidade da aventura colonizadora na América

A descoberta da América pelos europeus, nos fins do século quinze, deu lugar a uma transplantação da cultura européia para este Continente. Tal empreendimento constituiu, porém, uma aventura impregnada de duplicidade. Proclamavam os europeus aqui chegarem para expandir nestas plagas o cristianismo, mas, na realidade, movia-os o propósito de exploração e fortuna. A história do período colonial é a história desses dois objetivos a se ajudarem mùtuamente na tarefa real e não confessada da espoliação continental.
A vida do recém-descoberto Continente foi, assim, desde o começo, marcada por essa duplicidade fundamental: jesuítas e bandeirantes; "fé e império"; religião e ouro. O português e o espanhol que aqui aportavam não eram cristãos, mas, quando muito, "cruzados". Não vinham organizar nem criar nações mas prear... Esta obra destruidora e predatória nunca se confessava como tal, revestindo-se, nas proclamações oficiais, com o falso espírito de cruzada cristã.
De mistura com ansiosa indagação sobre ouro e minas, o primeiro ato público dos portugueses no Brasil foi a celebração da Santa Missa, e o nome que deram à Terra, o de Santa-Cruz e Vera-Cruz, pouco depois vencido pelo "de um pau de tingir panos", mas que produzia ouro.
Nascemos, assim, divididos entre propósitos reais e propósitos proclamados. A essa duplicidade dos conquistadores seguiu-se a duplicidade da própria sociedade nascente, dividida entre senhores e escravos, dando assim ao contexto social do continente recém-descoberto o caráter de um anacronismo, mesmo em relação à Europa, na época, em plena renovação social e espiritual.
Quatro séculos e meio após a descoberta, essa obscura e desabusada colonização oferece-nos o quadro seguinte: parte do hemisfério norte foi definitivamente conquistada e organicamente integrada em duas nações, de origem anglo-saxônia. Estas duas nações lideram, nesta parte do planeta, a revolução democrática e a revolução científica.
Para isto, os Estados Unidos (o Canadá é caso à parte) tiveram de destruir o índio "pagão", travar uma guerra de independência contra a Metrópole e, nos meados do século passado, se esvaírem numa das mais tremendas guerras civis que, até aquele momento, registrara a história. Os mortos se elevaram mais de um milhão só do lado do Norte, enquanto a população total da nação não excedia trinta milhões.
Se dualidade e duplicidade houve, pois, nessa parte norte continente, como de fato houve, entre colonizados e colonizadores, primeiro, e, depois, entre escravistas e capitalistas ou, mais exatamente, entre fazendeiros-patriarcas (Sul), ianques (Norte) e pioneiros (Oeste), tais divisões e conflitos se fizeram suficientemente claros e abertos, para se decidirem no campo de batalha.
A observação vale para mostrar que a sociedade em busca de sua orgânica integração, se não consegue superar pacìficamente as força que a dissociam, cai, ao que parece, inelutavelmente, na revolução e na guerra civil.
Abaixo do Rio Grande, desde o México até a Argentina e o Chile, somos, depois de rápidas lutas pela independência, no século dezenove, um grupo de nações mergulhadas nesse processo de organização e integração, com maiores ou menores regressos, todas lutando para efetivar as indispensáveis incorporações e assimilações sem a tragédia da guerra civil que marcou a sociedade americana. Nem sempre há completa percepção da dificuldade da tarefa. O velho vício da duplicidade mantém-nos, por vezes, no estado de descuidado enleio, com que escamoteamos a nós próprios a verdadeira realidade. Chegamos, em nossos hábitos, sob alguns aspectos, esquizofrênicos, a criar um tipo específico de revolução, misto de teatro e de espasmo de violência, a revolução insincera, a "revolução sul-americana"... É que a sociedade, ainda constituída na base de divisões e estratificações sociais até ontem toleradas, mas hoje, com os novos processos de comunicação e a "revolução das expectativas montantes", em ponto de perigo e de explosão, não ganhou completa consciência dos sinais que prenunciam as convulsões integradoras.
Para analisar essa situação sul-americana não é possível deixar de repetir observações que já se tornaram cediças. Nem o espanhol nem o português que aqui apartaram traziam propósitos de criar, deste lado do Atlântico, um mundo novo. Encontraram um mundo novo, que planejaram explorar, saquear e, assim enriquecidos, voltar à Europa. Viana Moog comentou, em páginas definitivas, o "sentido predatório" da aventura sul-americana em contraste com o "sentido orgânico" da formação norte-americana. Mundo novo "vinham fundar aqui" os peregrinos do Mayflower. Novo mundo encontraram aqui espanhóis e portugueses. O mundo novo dos americanos ia ser criado. O novo mundo dos espanhóis e portugueses iria ser saqueado. O saque prolongou-se, porém, e o regresso se retardou. Com o tempo, surgiram os espanhóis e portugueses nascidos no novo continente, filhos de espanhóis e portugueses das metrópoles. Chamaram-se "criollos", entre os espanhóis e "mazombos", entre os brasileiros. Brasileiros é modo de dizer, pois "o termo brasileiro, como expressão e afirmação de uma nacionalidade", não chegara a existir até começos do século XVIII, conforme nos diz Viana Moog, que assim define o "mazombismo", expressão cultural, dominante, no Brasil, até fins do século passado, pouco importando que o nome tivesse desaparecido: "consiste (o mazombismo) na ausência de determinação e satisfação de ser brasileiro, na ausência de gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, na carência de iniciativa e inventividade, na falta de crença na possibilidade do aperfeiçoamento moral do homem, em descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida, e, sobretudo, na falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo ao lugar e à comunidade em que vivia".
O radicalismo da formulação pode ser contestado, mas a afirmação é fundamentalmente verdadeira. Os "brasileiros" eram "europeus" nostálgicos, transviados nestas paragens tropicais. E como sucede em tais casos, nem eram aceitos pelos europeus, como europeus, nem pelos brasileiros mestiços, ou seja os primeiros brasileiros autênticos, como brasileiros. Esse tipo cultural, dúbio, ambivalente, nem peixe nem carne, acabou por criar nestas terras novas da América algo de congenitamente inautêntico, do congenitamente caduco, na cultura americana.
Não se tratava, com efeito, de reprodução das condições européias do momento, mas de um recuo, de uma restauração contraditória e anacrônica. O mazombo, dividido entre o desejo de regressar, o propósito de reproduzir a cultura da metrópole e as novas condições, o novo meio, a nova dinâmica da conquista, ignorava o próprio fato da transplantação cultural e a necessidade inevitável de adaptação e se perdia em impulsos ridículos e imitação e contrafação. Incapaz, pela sua irremediável duplicidade, de aceitar as modificações que o meio impunha, suprimia delas a possível força criadora, desnaturado o que havia de melhor no nascente esforço nacional.
Os "mazombos", com os "criollos", não eram europeus, nem sul-americanos... E assim hostis à sua própria terra acabaram por se constituírem objeto de um risonho desdém até do próprio mundo europeu, de que não se queriam desligar.
A verdade é que resistiam às força de formação nestas paragens de uma cultura autêntica, com o arraigado sentimento de estrangeiros em sua própria terra. Em vez de se voltarem para as possíveis deficiências ou diversificações da cultura européia em nosso meio e nelas buscar o sentido novo da adaptação local dos padrões transplantados, envergonhavam-se de tais modificações e chegavam até a procurar elidi-las ou escondê-las.
Mais do que isto. Chegaram à engenhosidade de pretender suprir as deficiências de nossa realidade humana e social por meio de revalidações legais. Já observei alhures que, em nosso mazombismo, com os olhos voltados para um sistema de valores europeus, que não conseguíamos ou não podíamos atingir, buscávamos, num esforço de compensação, "declarar", por ato oficiai ou legal, a situação existente como idêntica à ambicionada. Por meio desses "atos declaratórios" fazíamos, sem metáfora, de preto e branco, pois nada menos do que isso foram decretos declaratórios até de "branquidade", nos tempos coloniais, com quais visávamos tornar "convencional" a própria biologia.
Bem sei que podemos olhar para tais fatos sob a luz das dificuldades de implantar nos trópicos uma civilização de tipo europeu e considerar tal duplicidade como esforço patético de assimilação pelo menos externa dos valores da metrópole.
A realidade, porém, é que nos acostumamos a viver em dois planos, o "real", com as suas particularidades e originalidades, e o "oficial" com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. Enquanto fomos colônia, tal duplicidade seria explicável, à luz de proveitos que daí advinham para o prestígio do nativo, perante a sociedade metropolitana e colonizadora. A independência não nos curou, porém, do velho vício. Continuamos a ser, com a autonomia, nações de dupla personalidade, a oficial e a real.
A lei e o governo não consistiam em esforços da sociedade para disciplinar uma realidade concreta e que lentamente se iria modificar. A lei era algo de mágico, capaz de subitamente mudar a face das coisas. Na realidade, cada uma de nossas leis representava um plano ideal de perfeição à maneira da utopia platônica. Chegamos, neste ponto, a extremos inacreditáveis. Leis perfeitas, formulações e definições ideais das instituições, e, como ponto entre a realidade, por vezes, mesquinha e abjeta, e essas definições ideais da lei, os atos oficiais declaratórios, revestidos do poder mágico de transfundir aquela realidade concreta em uma realidade oficial similar à prevista na lei.
Tudo podíamos metamorfosear por atos do governo! Não havendo correspondência entre o "oficial" e o "real", podíamos transformar toda a vida por atos oficiais. Como já acentuei, tudo isto era possível, graças, primeiro, ao dualismo de colônia e metrópole e, depois, ao dualismo de "elite" e povo, aquela diminuta e aristocrática, este numeroso, analfabeto e mudo. Reproduzíamos com esse dualismo nacional a situação colonial, mantendo a nação no mesmo estado de duplicidade institucional.
2) Dificuldade da "transplantação" dos sistemas escolares

Desejamos examinar, neste trabalho, quanto esse dualismo, dir-se-ia congênito, da sociedade sul-americana, veio agravar no Brasil, pois só a respeito do Brasil podemos dar testemunho, o dualismo das instituições escolares, que buscamos transplantar, dando origem a paradoxal processo de expansão, pelo qual exaltamos o aspecto mais velho e destinado a desaparecer dos sistemas escolares que procurávamos copiar.
Entre as instituições sociais, sabemos que a escola, mais do que qualquer outra, oferece, ao ser transplantada, o perigo de se deformar ou mesmo de perder os objetivos. A escola já é de si uma instituição artificial e incompleta, destinada apenas a suplementar a ação educativa muito mais extensa e profunda que exercem outras instituições e a própria vida. Deve, portanto, não só ajustar-se, mas inserir-se no contexto das demais instituições e do meio social e mesmo físico. A verdade é que a escola, como instituição, não pode verdadeiramente ser transplantada. Tem de ser recriada em cada cultura, mesmo quando essa cultura seja polìticamente o prolongamento de uma cultura matriz.
No Brasil, a Universidade não chegou a ser transplantada. Motivos políticos levaram os colonizadores portugueses, ao contrário do que fez a Espanha, a esse ato de prudência pedagógica. Chegamos à independência sem imprensa e sem escolas superiores, com a maior parte de nossa elite formada nos colégios da Companhia de Jesus (cuja influência nunca poderá ser exagerada quanto a certos traços da tradição intelectual brasileira) e, a seguir, para a graduação superior, na Universidade de Coimbra, em Portugal, e assim continuamos, durante parte do império. Como que se percebia obscuramente o perigo de se transplantarem instituições delicadas e complexas como as da educação, sobretudo em seus níveis mais altos e, por isto mesmo, mais difíceis e complexos.
Durante toda a monarquia, já independentes, continuamos, quanto à expansão do sistema escolar, sumamente cautelosos e lentos. A classe dominante, pequena e homogênea, dotada de viva consciência dos padrões europeus e extremamente vigilante quanto à sua própria perpetuação, parece ter tido o propósito de manter restritas as facilidades de ensino, sobretudo de nível superior.
Com a abolição e a república, entramos, porém, em período de mudanças sociais, que a escola teria de acompanhar. O modesto equilíbrio dos períodos monárquicos, obtido em grande parte à custa da lentidão de nossos progressos e de número reduzido de escolas, com que se procurava manter a todo transe a imobilidade social, rompe-se afinal e tem início a expansão do sistema escolar.

3)Evolução de sistemas escolares europeus

Antes de examiná-la, cabe, porém, uma digressão para se fixarem as linhas de evolução das instituições escolares nos países de onde recebíamos as influências maiores.
É indispensável, preliminarmente, recordar que somente no século dezenove o Estado entrou a interferir, maciçamente, na educação escolar. E, a princípio, apenas para criar uma escola diversa das existentes, destinada a ministrar um mínimo de educação, considerado necessário para a vida em comum, democrática e dinâmica, da emergente civilização industrial.
Tal escola, ou seja, a escola primária, que logo se faz compulsória, não tem os objetivos da educação escolar tradicional, a que sempre existira, antes de o Estado se fazer educador, e que visava manter o alto status social do grupo dominante. A nova escola popular visa, tão-somente, e nunca é demais repetir, dar a todos aquele treino mínimo, considerado indispensável para a vida comum do novo cidadão no Estado democrático e industrial.
A seu lado, continuava a existir a outra educação, a de "classe", com os seus alunos selecionados, não em virtude de seus talentos, mas de sua posição social e de seus recursos econômicos, ministrada em escolas que, de modo geral, se achavam sob controle particular ou autônomo. Na Europa e, sobretudo, na França, os sistemas escolares correspondentes a esses dois tipos de escolas coexistiam, lado a lado, separados e estanques, mesmo quando vieram a ser mantidos pelo Estado. A escola primária, a primária superior, as escolas normais e as escolas de artes e ofícios constituíam o sistema popular de educação destinado a ensinar a trabalhar e a perpetuar o modesto status social dos que o freqüentavam. As classes "preparatórias" (primárias), o liceu, as grandes escolas profissionais, a escola normal superior e a universidade constituíam o outro sistema, destinado às classes abastadas e à conservação do seu alto status social. Está claro que ingressar em tais escolas seria um dos meios de participar dos privilégios dessas classes e, deste modo, ascender socialmente.
Como o critério da matrícula, nos dois sistemas, não era o de mérito ou demérito individual do aluno, isto é, de sua capacidade e suas aptidões, mas o das condições sociais, ou econômicas, herdadas ou ocasionalmente existentes, a distinção real entre os sistemas não era de nível intelectual mas de nível social. A longa associação da educação escolar com as classes mais abastadas da sociedade determinou que, só em mínima parte, a escola se fizesse realmente selecionadora de valores. Devendo receber todos os alunos cujos pais estivessem em condições de arcar com o ônus de uma educação prolongada dos filhos, independente da capacidade individual desses mesmos alunos e de seu nível intelectual, a escola desenvolveu filosofia da educação toda especial.
Tal filosofia era a de que quanto mais supérfluos fossem os estudos escolares, mais formadores seriam eles da chamada elite que às escolas fora confiada. Não se sabia o que seus alunos iriam fazer, salvo que deveriam continuar a integrar as classes abastadas a que pertenciam. Logo, se se devotassem os alunos a estudos inúteis, "desinteressados", mas, segundo uma falsa psicologia, "formadores da mente", deveriam depois ficar aptos a fazer qualquer coisa que tivessem de fazer, na sua função de componentes do chamado escol social...
E assim se afastou da escola qualquer premência do fator "eficiência", chegando-se a considerar tudo que se pudesse chamar de "prático" ou "utilitário" como de pouco educativo. A escola "acadêmica", isto é, supostamente treinadora do espírito e da inteligência, passou a ser algo de vago, senão de misterioso, educando por uma série de "exercícios", reputados de ginástica mental, ou pelo ensino de "matérias" tidas especialmente como dotadas de "poderes educativos", estas para o treino da memória, aquelas, da imaginação, outras, da observação, e, deste modo, capazes de produzir peritos do intelecto ou da sensibilidade. Por isto mesmo que buscava resultados tão abstratos e tão alusivos, não podia desenvolver critérios severos de eficiência. Os resultados só viriam a ser conhecidos mais tarde, na vida, quando os respectivos ex-alunos, vinte ou trinta anos depois, vitoriosos em suas carreiras, por motivos absolutamente diversos, apontassem para o latim distante ou os incríveis exercícios de memória e dissessem que tudo deviam àquela escola, aparentemente tão absurda e, no entanto, tão miraculosa!
Essa escola tradicional, tipicamente de "classe", destinada aos grupos mais altos da sociedade, e eficaz para eles, pois não ministrava senão educação para a fruição, para o lazer, não era e nunca foi uma escola seletiva de inteligência. Pelo contrário, constituía uma forma especial de educação, destinada a qualquer inteligência, desde que o aluno pertencesse aos grupos finos e abastados da sociedade.
Tal escola tradicional acabou por se fazer um anacronismo nos grandes sistemas escolares europeus. As força sociais e o desenvolvimento científico, que haviam compelido o Estado a criar a educação mínima compulsória e as escolas pós-primárias de educação prática e utilitária, renovaram as condições de preparo até mesmo para as velhas profissões liberais e impuseram várias outras profissões técnicas que também demandavam outro tipo de educação. Tais força vêm transformando e unificando toda a educação escolar, que passou a objetivar o preparo dos homens (de todos os homens), de acordo com suas aptidões, a fim de redistribuí-los pelas múltiplas e diversas ocupações de uma sociedade industrial, científica e extremamente complexa. Educação assim, com tais propósitos definidos e claros, já não visa a nenhum fictício "treino da mente", mas à especialização adequada para ocupações específicas, inclusive a ocupação acadêmica, no sentido de formação do professor, do estudioso ou do cientista. A educação para o lazer continuou e continua sem dúvida a existir, mas como parte integrante da educação de qualquer um, desde o cidadão comum até o de nível mais alto, em escolas que a todos visa a formar para o trabalho, segundo a sua inteligência, e para o consumo, segundo as suas posses ou as posses da sociedade de abundância em vias de surgimento.
O importante a notar é, porém, que esta nova educação já não é uma educação para "certa classe superior", mas educação para a inteligência: quanto mais inteligente o aluno, mais longe poderá ele ir. Por isto mesmo, não gozou daquela sedução da antiga escola acadêmica, a qual "classificava" o aluno e lhe permitia a ascensão automática à chamada "elite". A nova escola só facilitava a ascensão dos mais inteligentes e capazes.
A fusão ou integração dos dois sistemas escolares – o prático e especializado e o das elites – acabou por se processar, em todos os países desenvolvidos, desaparecendo, de certo modo, a antiga educação puramente de "classe". Na América do Norte, pela organização de um único sistema público de educação, com extrema flexibilidade de programas e a livre transferência entre eles. Na Inglaterra, pela "escada contínua" de educação, pela qual se permite que o aluno, seja lá qual for a escola que freqüente, ou a classe a que pertença, possa ascender a todos os graus e variedades de ensino. Na França, pela transferibilidade do aluno de um sistema para outro, com o que, de certo modo, se unificaram os dois sistemas, seguido de um regime de bôlsas-de-estudo, destinado a permitir aos alunos desprovidos de recursos, mas capazes, o acesso às altas escolas seletivas.
Além dessa interfusão dos alunos, pela qual se quebrou o dualismo do sistema, do ponto-de-vista das classes que abasteciam os dois tipos diversos de escolas, processou-se verdadeira revisão de métodos e programas, graças à qual as escolas chamadas utilitárias se vêm fazendo, cada vez mais, escolas de cultura geral, sem perda dos seus aspectos práticos, e as escolas chamadas "clássicas" ou "acadêmicas" se vêm transformando, cada vez mais, em escolas de cultura moderna, preocupadas com os problemas de seu tempo, sem perda dos aspectos de cultura geral, hoje mais inteligentemente compreendidas.
Em todos os países democráticos, os sistemas escolares tendem assim a constituir um único sistema de educação, para todas as classes, ou melhor, para uma sociedade verdadeiramente democrática, isto é, sem classes fechadas, em que todos os cidadãos tenham oportunidades iguais para se educar e, se distribuir, depois, pelas ocupações e profissões, de acordo com a capacidade e aptidões individuais demonstradas e confirmadas.
No novo sistema educacional, a classificação social posterior do aluno é resultado da redistribuição operada pelo processo educativo e não algo que decorra automaticamente de haver freqüentado certas escolas destinadas a grupos privilegiados de alunos de recursos. O aluno terá as oportunidades que sua capacidade e o preparo realmente obtido determinarem.
Está claro que nenhum país atingiu ainda esta perfeição. Mas, nos Estados mais desenvolvidos, já se estende aquela educação mínima oferecida pelo Estado até os 16 e os 18 ou 19 anos com ampla diversificação de currículos e programas para as diferentes aptidões, seguidas de um sistema de bolsas para os estudos superiores, a fim de facilitar o ingresso dos capazes sem recursos – uma vez que o ensino superior, de modo geral, ou depende dos recursos da família ou impõe sacrifícios pessoais consideráveis.

4) Evolução dos sistemas escolares brasileiros

Em nossos países, embora insista que me refiro especialmente ao Brasil, devia repetir-se evolução ao longo das linhas acima referidas. Ao iniciar-se, com efeito, a nossa expansão escolar, e a fim de obstar a que tal expansão gerasse perturbadores deslocamentos sociais, não faltou o cuidado de se desenvolver, como na Europa, dois sistemas educacionais: um pequeno, reduzido, acadêmico, destinado à classe dominante; e outro, primário, seguido de escolas normais e profissionais, destinado ao povo, com a amplitude que fosse possível. Os dois sistemas, paralelos e independentes, ainda mais afastados ficariam, se o primeiro fosse dominantemente particular. E assim se fez, evitando-se, desse modo, qualquer perigo de ascensão social mais acelerada.
Tivemos, pois, expansão, mas a imobilidade social, como na Europa, ficou assegurada, do modo acima exposto, ou seja, retirando-se qualquer atrativo ao sistema popular de educação, destinada a manter cada um dentro de seu status social, e transferindo à órbita privada o sistema acadêmico, pela sua escola secundária de elite, a fim de que não fosse acessível senão aos que tivessem recursos.
Graças a tais circunstâncias, conseguimos manter reduzidas as oportunidades educacionais destinadas a permitir efetivamente a ascensão social, limitando a escola secundária – propedêutica ao ensino superior - aos alunos que já se encontrassem em certas camadas da sociedade, não podendo os demais freqüentá-la, por falta de recursos econômicos ou por falta de condições prévias de educação doméstica e social.
Como organizávamos as nossas escolas segundo os padrões europeus e como tais padrões presumiam níveis de educação coletiva e doméstica relativamente altos, comparados aos existentes em nossa população mais baixa, a escola, mesmo a que se designava de popular, não era popular, mas tìpicamente de classe média. Não era só a roupa, e sapato, que afastavam o povo da escola, mas o próprio tipo de educação que ali ministrávamos e de que não podia aproveitar-se, em virtude da penúria do seu ambiente cultural doméstico. O "padrão europeu", cuidadosamente mantido, servia assim para limitar a participação popular à própria escola popular. A escola primária e a escola normal prosperavam, mas como escolas de classe média; a escola acadêmica e o ensino superior ficavam ainda mais restritos, destinando-se dominantemente a grupos da classe superior alta. Abaixo dessas classes, média e superior, dormitava, esquecido, o povo.
Toda expansão de educação, é preciso que se leve em conta, determina a alteração das condições existentes de estabilidade social e, também, importa em alteração dos tipos de educação anteriormente dominantes. É fácil compreender que, salvo casos de estados sociais regressivos, toda sociedade produz a educação necessária à sua perpetuação. A sociedade de tipo estagnado que se produzira, afinal, na América do Sul, tinha, em suas reduzidas oportunidades educativas, as condições apropriadas à perpetuação do estado social vigente.
Quando a aspiração da educação compulsória para todos surge, representa este fato um desejo de mudança social. Trata-se de ampliar a participação dos membros da sociedade na sua comunidade moral e política; trata-se de ampliar os direitos dos membros da sociedade; trata-se de melhorar suas condições de trabalho; trata-se de facilitar oportunidades, não só de participação, mas de ascensão social. E esta foi a situação em toda a Europa.
Entre nós, entretanto, proclamava-se o ideal da educação compulsória, mas, na realidade, a sociedade, pelas suas força conservadoras, a ela se opunha. Mil e um meios são utilizados para se restringirem as facilidades de educação compulsória. Como já não seriam legítimos tais movimentos de defesa do status quo, fazem-se eles, tortuosos, sutis e obscuros. A dualidade social já não pode ser proclamada. Proclamá-la agora é a aspiração à participação integradora. Como então evitá-la? Dificultam-se os recursos para o empreendimento; ministra-se educação do tipo inútil e que desencoraje a maioria em prossegui-la; e se a teimosia popular insistir pela freqüência à escola, abrevia-se o período escolar, oferece-se o mínimo possível de educação, alega-se que tal se faz por princípios democráticos, a fim de atender a todos ... Contanto que o processo educativo perca os seus característicos perturbadores, ou seja, a sua capacidade de facilitar o deslocamento e a reordenação social, em virtude da expansão escolar a todos.
Depois de assim degradar a educação popular compulsória, as nossas sociedades, em sua duplicidade proverbial, entram a manobrar para impedir a ampliação das oportunidades de educação de nível médio e superior.
No período de estagnação social, nenhuma dificuldade havia para isto. Bastava manter a educação, propriamente de elite, confiada à iniciativa privada, ou então, com currículos suficientemente "desinteressantes", em rigor inúteis, para desencorajar possíveis veleidades desconcertantes ...
O fracasso desses recursos habituais para o controle da expansão educacional, é a surpresa dos últimos trinta anos da vida brasileira e, acredito, de grande parte das nações sul-americanas.
A nascente classe média da década dos vinte, numa sociedade sem tradição de classe média, porque realmente constituída da casta semi-aristocrática e semifeudal dominante e do povo propriamente dito, entrou a exigir para si exatamente a educação acadêmica e semi-inútil da classe alta. Se passasse a exigi-Ia e tivesse a liberdade de tentar praticá-la experimentalmente, talvez acabasse criando uma escola que conviesse aos seus interesses e não prejudicasse a sociedade como um todo. Mas aí é que surgiu o obstáculo: mantiveram-se as leis antigas, elaboradas para impedir a expansão por meio de padrões de estudo, altos e complicados. Mantidos que foram tais padrões e currículos, abriu-se o caminho à falsificação, saída única para a expansão desejada. A alternativa deveria ser a de experimentação, de ensaio, de escolas com professores despreparados, mas livres de tentar ensinar o que soubessem, em progresso gradual com reconhecimento e classificação a posteriori. Negada tal alternativa, a saída única foi a ousada simulação do cumprimento dos "padrões" fixados a priori, altos e impostos pelo centro, fossem lá quais fossem as condições. Já não se tratava de tateios de ensaios, de esforços modestos, mas sérios, a serem apreciados a posteriori, repito, por meio de exames de Estado, ou processos semelhantes de verificação. Tratava-se de pura e simples burla; burla de currículos, burla de professores, burla de alunos. A educação fez-se um ritual, um processo de formalidades, como se tratasse de algo convencional, que se fizesse legal pelo cumprimento das formas prescritas.
O ideal professado da expansão das oportunidades educativas, ao invés de promover a educação real de um número maior de indivíduos, determinou a degradação das próprias formas destinadas à perpetuação da elite tradicional. Se um grupo social não tivesse criado para si condições especiais de privilégio, fundadas nos seus títulos formais de educação, não seria provável que o grupo ascendente da sociedade quisesse para si uma educação tão pouco eficiente e muito menos tornada inútil pela simulação e degradação dos seus próprios padrões. Se a burla ou engano traz vantagens, é que a sociedade era ainda aquela sociedade impregnada de duplicidade do tempo da colônia.
Trata-se, com efeito, de algo particular, e somente possível, porque o processo educativo de preparação da "elite" não se fazia com os recursos culturais reais e locais da vida brasileira, mas constituía processo especial de incorporação de aspectos de "cultura estrangeira" ou ainda estrangeira ... A burla cultural, ou seja, o charlatanismo, é logo descoberta em qualquer cultura, seja lá qual for o seu nível. Jamais algum país poderia estabelecer, conscientemente, um regime de burla cultural. Se tal se dá, em algum país, é que este país está a burlar algo de estranho à sua própria cultura. Trata-se de incorporação de algo estrangeiro, cuja importância, não sendo compreendida nem sentida, parece poder ser burlada sem maiores conseqüências. É evidente que a educação chamada de "elite" se fazia com o propósito de formar pessoas para uma cultura alienada da cultura local ou da cultura de seu tempo. Sabemos, com efeito, que as veleidades de formação humanística dessas escolas semi-aristocráticas dos nossos países centro e sul-americanos pretendiam transmitir uma cultura literária clássica, "latina", e supostamente herdada pelas nossas culturas indígenas ou mestiças.
A elite colonial estrangeira, depois a elite monárquica nativa e, por último, a elite republicana, vinda da Monarquia, todas se enfeitavam com traços dessa cultura européia e veleidades até de cultura clássica. Somente no século XX, e mais acentuadamente a partir do fim da segunda guerra mundial, é que se inicia a desagregação dessa pseudocultura e surgem sinais de uma autêntica cultura nativa.
Diante dessa ruptura dos quadros culturais, impunha-se, repetimos, a modificação dos "padrões" impostos e o início de, um regime de liberdade e experiência, com a fixação de padrões a serem gradualmente atingidos, em sucessivas verificações que, pouco a pouco, estabelecem, a posteriori, padrões locais, padrões regionais e, enfim, padrões nacionais. O nacional não se imporia, mas seria o resultado desejado e buscado, o resultado a alcançar. Por que jamais estabelecemos essas condições? Por que preferimos os diktats legislativos, impondo uniformes, rígidos e perfeitos "padrões", para, a seguir, sob a pressão das força de expansão, conceder autorizações para o funcionamento de escolas no mais terrível desacordo com tais padrões? Não é fácil de explicar. Mas, é isto que estamos tentando fazer.
Mantendo o poder centralizado, dificultando a experimentação e o ensaio, impondo, artificialmente, "padrões uniformes", que copiávamos de "modelos" europeus, já na própria Europa, aliás, como antes observamos, em processo de transformação, tomou o governo central, rigorosamente, a posição de "metrópole" colonizadora, submetendo a educação a modelos impostos e alheios às condições sociais e locais.
O desejo real seria o de "coarctar", o de "impedir" a expansão e assim manter o status quo. Ignorou-se, porém, aquele velho hábito de metamorfosear a realidade por meio de atos oficiais declaratórios. Logo que a pressão social se fez suficientemente forte para expandir de qualquer modo as oportunidades escolares, o grupo social ascendente procurou aproveitar-se daquela velha atitude de revalidação legal. O controle central, destinado aparentemente a assegurar a "qualidade" e a obstar a simplificação da escola, passou a ser, pelo contrário, o próprio instrumento da expansão, "revalidando" situações, apesar de seu desencontro com os padrões da lei, por meio de atos que equivaliam a considerá-las idênticas às daqueles padrões.
O governo central, "poder concedente", poderoso e distante, fez-se o instrumento da expansão, autorizando escolas, mediante um sistema de "formalidades" processuais, fiscalização "nominal" e "legalização" de papéis de exame, dando origem à criação originalíssima de verdadeiro "cartório educacional", por meio do qual se "certifica" a educação recebida e se declara não a sua eficiência, mas a sua legalidade. Educar, no Brasil, transformou-se numa questão de formalidades técnicas legais, da mesma natureza das que regem a compra e venda de um imóvel ...
A situação não se iniciou com o desembaraço que hoje a caracteriza. No início houve rigores. Mas o fato de a escola ser definida em lei e dever ser autorizada a funcionar, dentro dos "padrões" previstos na lei – altos, perfeitos e rígidos padrões, a priori fixados – tal fato somente poderia ser compreendido como um processo de impedir a expansão educacional, ou de não permiti-Ia senão quando a escola fosse do tipo conveniente a certa classe, em condições de aproveitar-se dos padrões estipulados, mais ou menos estrangeiros e em completa desvinculação com a realidade temporal e local. Se, em contradição com estes propósitos, a pressão social acabou por obrigar a expansão de qualquer modo das escolas, havia que mudar a legislação. Como não o fizemos, tivemos que manter apenas na aparência os tais "padrões", duplamente inexeqüíveis: primeiro, devido à falta de professores e, segundo – o que é mais importante ainda, se possível – devido a não estarem os alunos de origem social modesta, que buscavam as novas escolas, nas condições de classe ou de meio cultural necessárias para tirar real proveito do tipo de educação puramente acadêmica, previsto nas leis. Para a expansão imprudente faltavam, assim, professores e alunos do tipo exigido pelos "padrões" altos e estranhos à cultura local.
Recordemos, conforme já nos referimos, que também nós tivemos o cuidado de manter um sistema de ensino dual, embora sem a nitidez do paradigma francês. A escola primária, a escola normal e as chamadas escolas profissionais e agrícolas constituíam um dos sistemas; e a escola secundária, as escolas superiores e, mais recentemente, a universidade, o segundo sistema. Neste último, dominava a filosofia educacional dos estudos "desinteressados" ou inúteis, mas supostamente treinadores da mente, e no primeiro, a da formação prática e utilitária, para o magistério primário, as ocupações manuais ou os ofícios, as atividades comerciais e agrícolas.
No propósito de conservar tranqüilizadora imobilidade social, o Poder Público adotou a política de manter, de preferência, as escolas primárias, normais, técnicas e agrícolas – desinteressando-se pelo ensino secundário acadêmico. Estabelecimentos deste tipo, não manteria senão alguns poucos, considerados de demonstração ou modelos. A política educacional seria, assim, a de promover apenas o sistema público de educação, caracterizado por escolas populares e de trabalho. Com o objetivo disto assegurar é que o Estado conservou a legislação anterior de ensino, pela qual tinha o ensino secundário acadêmico o privilégio de constituir-se o meio de acesso ao ensino superior. Como tal ensino seria dominantemente particular e, portanto, pago, acreditou-se ser isto suficiente para limitar a sua matrícula às classes mais abastadas do país. O ensino primário, o normal e o técnico-profissional continuariam desse modo as vias normais de educação das classes populares, fechada, assim, a sua possibilidade de ascensão social. Pois o ensino secundário, destinado a tal ascensão, seria privado e pago.
Tal duplicidade legislativa deu resultado oposto ao visado. A grande maioria dos alunos das classes modestas, mas ascendentes, precipitou-se em grande afluxo para as escolas secundárias. O Estado julgava que, não as criando nem mantendo, poderia conter a pressão social para o acesso a elas. Mas, não reparou que, embora quase não as mantivesse, reconhecia, pela equiparação, as escolas particulares, quantas aparecessem. E isto era o mesmo, ou era mais do que mantê-las, pois com isto retiraria à matrícula o caráter competitivo que as escolas públicas desse nível, não sendo para todos, haveria de adotar. Por outro lado, também não refletiu que, dada a organização da escola secundária e, sobretudo, a sua mantida filosofia de escolas apenas para um suposto "treino da mente", tal escola podia ser barata, enquanto as demais escolas – para "treino das mãos", digamos, a fim de acentuar o contraste – seriam sempre caras, pois requeriam oficinas, laboratórios e aparelhagem de alto custo.
E foi deste modo surpreendente e paradoxal que se abriu o caminho para a expansão escolar descompassada, que se processou em todo o país, nos últimos trinta anos... De um lado, passamos a ter a escola secundária, regulamentarmente uniforme e rígida, de caráter acadêmico, e, portanto, aparentemente fácil de fazer funcionar, com o privilégio de escola de passagem para o ensino superior (passagem naturalmente ambicionada por todos os alunos), de custo módico e entregue à iniciativa particular, mediante concessão pública; e do outro, um sistema público de educação – a escola primária, a escola normal, o ensino técnico-profissional, comercial e o agrícola – sem nenhum privilégio especial, valendo pelo que conseguisse ensinar e não assegurando nenhuma vantagem, nem mesmo a de passar para outras escolas. Está claro que o sistema público de escolas, via de regra, entrou em lento perecimento, enquanto a escola secundária, em sua mor parte, de propriedade privada, mas reconhecida oficialmente, com o privilégio máximo de ser a estrada real da educação, iniciou a sua carreira de expansão, multiplicando muitas vezes a sua matrícula nos últimos trinta anos. Operada essa expansão, passou-se à do ensino superior. A escola secundária propedêutica tem de se continuar na escola superior. Multiplicam-se então as faculdades de filosofia, de ciências econômicas, de direito e, de vez em quando, mais audaciosamente, até escolas de medicina e de engenharia.
Tudo isto se fez possível, graças à manutenção de uma legislação anacrônica, destinada a conter a expansão do ensino e mantê-lo somente acessível às classes mais abastadas. Com efeito, a concessão desse ensino à iniciativa privada visava torná-lo um ensino caro. A falta de consciência, entretanto, da sociedade nascente, em relação às dificuldades de ensino desse tipo criou a oportunidade para que se multiplicassem exatamente as escolas desse molde acadêmico.
Sentido surpreendente dessa evolução. Dois conceitos anacrônicos.
Impossível não nos surpreendermos com tal resultado. Imagine-se que na Inglaterra alguém pensasse multiplicar Oxford e Cambridge, porque essas universidades eram, até o fim do século XIX, universidades clássicas, sem ciências nem tecnologia, puramente humanísticas e, portanto... fáceis de manter!
Ao invés da fusão transformadora dos dois sistemas, que se deu em todas as nações desenvolvidas, tivemos, no Brasil, a expansão da educação de tipo dominantemente acadêmico, ou como tal considerada. A educação desse tipo, a mais difícil das educações, foi aqui tornada a mais fácil e a mais barata. Mas a população brasileira não está a buscar tais escolas em virtude dos ensinamentos que ministram, pois realmente pouco ensinam, mas pelas vantagens que oferecem e pelo menor custo de seus estudos, o que permite que sejam elas ainda escolas privadas. Como nem professores nem alunos lá estão seriamente a buscar a educação que a escola "proclama" oferecer, reduzem-se todos os seus pseudo-estudos a expedientes para passar nos exames.
Os sistemas escolares que visamos imitar transformaram-se e hoje são sistemas unificados de estudos acadêmicos, científicos e tecnológicos, de acesso baseado na competência e no mérito. Nós, pelo contrário, expandimos tudo que era, na Europa, resultado de anacronismo ou de errôneas teorias psicológicas, levando os nossos sistemas escolares ao incrível paradoxo de se transformarem em uma numerosa congérie de escolas de ensino para o lazer, em uma civilização dominantemente de trabalho e produção.
No esforço de explicar tal paradoxo, talvez se deva recordar que no século dezoito gozava grande voga a teoria da educação para a ilustração, de certo modo aparentada à da educação acadêmica para cultura geral. Tal educação seria sempre um bem em si mesma e que importaria distribuir a quantos se pudesse, mesmo em quantidades ínfimas. Não seria impróprio chamar-se tal concepção de concepção mágica de educação. Diante dela, a escola passa a ser um bem em si mesma e, como tal, sempre boa, seja pouca ou inadequada, ou mesmo totalmente ineficiente. Algo será sempre aprendido e o que for aprendido constituirá um bem.
É graças a concepções desse feitio que devemos poder racionalizar a nossa expansão irresponsável de escolas e justificar a nossa coragem de chamá-las de escolas acadêmicas ou intelectuais.
Mas, se conservamos ainda a concepção perempta e mística dos séculos dezoito e dezenove, não conservamos as condições dominantes naquele tempo. Temos hoje as mesmas necessidades dos países desenvolvidos, precisando de nos educar para novas formas de trabalho e não apenas formas novas de compreender o nosso papel social e humano, como seria o caso nas tranqüilidades, a despeito de tudo, do século dezoito.
Daí, então, a educação – e quando falo em educação compreende-se sempre educação escolar – precisar ser, tanto num país subdesenvolvido, quanto nos países desenvolvidos, eficiente, adequada e bem distribuída, significando por estes atributos: que deve ser eficaz, isto é, ensine o que se proponha a ensinar e ensine bem: que ensine o que o indivíduo precisa aprender e mais, que seja devidamente distribuída, isto é, ensine às pessoas algo de suficientemente diversificado, nos seus objetivos, para poder cobrir as necessidades do trabalho diversificado e vário da vida moderna e dar a todos os educandos reais oportunidades de trabalho.
A educação faz-se, assim, necessidade perfeitamente relativa, sem nenhum caráter de bem absoluto, sendo boa quando, além de eficiente, for adequada e devidamente distribuída. Já não nos convém qualquer educação dada de qualquer modo. Deste tipo já é a que recebemos em casa e pelo rádio e pelo cinema. A educação escolar tem de ser uma determinada educação, dada em condições capazes de torná-la um êxito, e a serviço das necessidades individuais dos alunos em face das oportunidades do trabalho na sociedade.
A contradição entre estas novas necessidades educativas e o velho conceito místico e absoluto da escola-bem-em-si-mesma, juntamente com a expectativa de automática ascensão social pela escola que antes analisamos, deve ajudar-nos a identificar a gravidade da falsa expansão educacional brasileira.

5) Distância entre os valores proclamados e os valores reais

Estamos, com efeito, ao contrário do que fizeram os países desenvolvidos, a inspirar a nossa expansão educacional com os conceitos de educação-bem-em-si-mesma e de educação exclusivamente para fruição e lazer, há um século, pode-se dizer, superados. São estes os dois conceitos errôneos, que, a nosso ver, ainda dominam, na realidade prática, a política educacional brasileira, quiçá sul-americana: a) a concepção mística ou mágica da escola, pela qual toda e qualquer educação tem valor absoluto e, por conseguinte, é útil e deve ser encorajada por todos os modos; b) a concepção de educação escolar como processo de passar, de qualquer modo, automàticamente, ao nível da classe média e ao exercício de ocupações leves ou de serviço e não de produção.
Respondem tais conceitos pelas racionalizações com que substituímos os valores que proclamamos pelos valores reais bem diversos, que praticamos, conforme se poderia facilmente exemplificar.
Assim, ao mesmo tempo em que proclamamos a importância suprema do ensino primário, aceitamos a sua progressiva simplificação: pela redução de horários para alunos e professores e a tolerância cada vez maior de exercício de outras ocupações pelos mestres primários; pela redução do currículo a um corpo de noções e conhecimentos rudimentares, absorvidos por memorização, e a elementaríssima técnica de leitura e escrita; pela precariedade da formação do magistério primário; pela improvisação crescente de escolas primárias sem condições adequadas de funcionamento e sem assistência administrativa ou técnica; pela perda crescente de importância social da escola primária, em virtude de não concorrer especialmente para a classificação social dos seus alunos; pela substituição de sua última série pelo "curso de admissão" ao ginásio, buscado como processo mais apto àquela desejada "reclassificação social".
Ao mesmo tempo em que proclamamos o ensino médio como recurso para melhorar o nível de formação de nossa força de trabalho, admitimos a sua expansão por meio de escolas ineficientes, com programas livrescos, horários reduzidos e professores improvisados ou sobrecarregados, em virtude das expectativas que gera de determinar a passagem para as ocupações de tipo classe média que é o que realmente buscamos.
Proclamando a necessidade da formação dos quadros de nível superior, aceitamos, fundados na mesma duplicidade de objetivos, a improvisação crescente de escolas superiores, sobretudo aquelas em que a ausência de técnicas específicas permite a simulação do ensino, ou o ensino simplesmente expositivo, como as de economia, direito e filosofia e letras.
Nos demais campos, promovemos, cheios de complacência, campanhas educativas mais sentimentais do que eficientes, na área da educação de adultos, da educação rural e do chamado bem-estar social. Resistindo à idéia de planejamento econômico e financeiro, insinuamos, implicitamente, que se pode fazer educação sem dinheiro, animando campanhas de educandários improvisados e crenças ainda menos razoáveis de que toda a educação pode ser gratuita, para quem quiser, do nível primário, ao superior, sejam quais forem os recursos fiscais e em que pese a deficiência per capita da nossa "riqueza nacional".
Poderíamos continuar a alinhar outros fatos, ou desdobrar os apresentados em outros tantos, como, por exemplo, os relativos ao currículo secundário, reconhecidamente absurdo pela impossibilidade de ensinar tantas matérias, mesmo com professores ótimos, no tempo concedido, mas ainda assim tranqüilamente aceito em sua ineficiência, porque a educação sempre foi isto, uma espécie de atirar-no-que-viu-e-matar-o-que-não-viu, não se concebendo que haja exigência de tempo, espaço, equipamento, trabalho e dinheiro, acima de um minimum minimorum que torne a educação sempre possível e para toda a gente. Somente a concepção de educação como uma atividade de caráter vago e misterioso é que poderia levar-nos a aceitar essa total e generalizada inadequação entre meios e fins na escola. A isto é que chamo de concepção mágica da educação, que me parece a dominante em nosso meio como pressuposta inconsciente e base de nossa política educacional. Não podemos modificar por ato de força a mentalidade popular em educação, como não podemos modificar a crença de muitos no uso, por exemplo, da prece para chover; mas, já chegamos àquele estágio social em que não oficializamos, não legislamos sobre a obrigação de preces públicas contra flagelos climatéricos ...
Em educação, há que fazer o mesmo. Toda essa educação de caráter mágico pode ser permitida, pode ser deixada livre; mas, não deve ser sancionada tendo conseqüências legais. Este, o primeiro passo para que tais tentativas sejam realmente tentativas e tenham caráter dinâmico, tornando possível o progresso gradual das escolas, desse estágio mágico até o estágio lógico ou científico, em que meios adequados produzam os fins desejados.
A escola primária entre nós encontra-se, aliás, nessa situação. Não se dá ao seu diploma nenhum valor especial e, por esse motivo, chegou a ser uma escola de razoável autenticidade. Se hoje está perdendo esse caráter é que as escolas de nível secundário não obedecem ao mesmo regime e, tendo como alto prêmio o seu diploma, estão atraindo os alunos antes de terminarem o curso primário, o qual assim se isola e se desvaloriza socialmente.
É indispensável que a escola secundária tenha a mesma finalidade geral educativa que possui a escola primária, sem outro fim senão o dela própria. Só assim, como a escola primária, ela será, quando tentativa, uma tentativa com as vantagens e incertezas de uma tentativa, e quando organizada e eficiente, uma escola realmente organizada e eficiente, dando os frutos de sua eficácia.
É felizmente para isto que marchamos, à medida que a mentalidade da nação, sob o impacto das mudanças sociais e da extrema difusão de conhecimentos da vida moderna, vem, gradualmente, substituindo seus conceitos educacionais, ainda difusos, pelos novos conceitos técnicos e científicos, e apoiando uma reconstrução escolar, por meio da qual se estabeleça para os brasileiros a oportunidade de uma educação contínua e flexível, visando prepará-los para a participação na democracia e para a participação nas formas novas de trabalho de uma sociedade economicamente estruturada, industrializada e progressiva. Grande passo neste sentido foi a lei, já em vigor, de equivalência relativa entre o curso acadêmico e os cursos vocacionais.
Essa educação, nas primeiras seis séries, comum e obrigatória para todos, prosseguirá em novos graus, no nível médio, para os mais capazes e segundo as suas aptidões, visando, como a de nível primário, à preparação para o trabalho nas suas múltiplas modalidades, inclusive a do trabalho intelectual, mas não somente para este.
A continuidade da escola – em seus diferentes níveis irá emprestar-lhe o caráter de escola para todos, sem propósito de classificação social, dando a cada um o de que mais necessitar e mais se ajustar à sua capacidade, com o que melhor se distribuirá ou redistribuirá a população pelas diferentes variedades e escalões do trabalho econômico e social, segundo as necessidades reais do país em geral e de suas regiões em particular.
Tal sistema de educação popular, abrangendo de 11 a 12 séries ou graus, permitirá, quando completo ou integralmente organizado, que o aluno se candidate, após a última série ou grau, ao ensino superior, pelo regime de concurso. Não visa, entretanto, ao preparo para esse exame, pois terá finalidade própria, significando, nos termos mais amplos, a educação da criança, no período da escola primária, e a educação do adolescente, no da escola média.
O que será essa educação não será a lei que o vai dizer, mas a evolução natural do conhecimento dos brasileiros relativamente à criança e ao adolescente e à civilização moderna e industrial em que a escola, no primeiro nível, vai iniciar as crianças e, no segundo nível, habilitar economicamente os jovens adolescentes brasileiros. Tal escola mudará e transformar-se-á como muda e se transforma toda atividade humana baseada no conhecimento e no saber. Progrediremos em educação, como progrediremos em agricultura, em indústria, em medicina, em direito, em engenharia – pelo desenvolvimento do saber e pelo melhor preparo dos profissionais que o cultivam e o aplicam, entre os quais se colocam, e muito alto, os professores de todos os níveis e ramos.

(TEIXEIRA, Anísio. Valores proclamados e valores reais nas instituições escolares brasileiras. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.37, n.86, abr./jun. 1962. p.59-79.)

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