(Publicado no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, em 10/11/2014)
"Não é preciso ter a finura de Marcel Proust para
evocar as trapaças do tempo que toldam a memória e fragilizam a vontade. Santo
Agostinho tem duras páginas sobre a nossa desgraça na finitude, mortal fuga do
Eterno. Dele fomos expulsos pelo erro que nos trouxe a mentira e o declínio até
o Apocalipse. Em plano bem menor, os escândalos da vida econômica e política
escondem armadilhas que dominam a consciência pública, distorcida pela
falsidade cronológica. Temos notícias dos crimes e delitos de modo diacrônico:
toda manhã os jornais trazem os "malfeitos". Retomados, tais fatos
entorpecem os sentidos. Após alguns anos poucos indivíduos ouvem, olham,
sentem, inalam a podre desolação imperante nas instituições pervertidas pelos
interesses ilegais.
Sistemática, a vida coletiva pervertida tem outro
lado, o sincrônico: no instante em que uma quadrilha assalta certa repartição
ou instituto, outra age de modo igual em parte distante ou próxima do poder. A
máquina de moer princípios éticos opera em dois registros temporais. A
cidadania distraída sempre retoma a cantilena da indignação quando estoura um
escândalo, mas não busca o fio que une os atentados aos dinheiros públicos.
Como arrancar, na luz diurna, bilhões destinados às
políticas públicas? Ninguém pode fazer tal milagre isoladamente. Para o sucesso
toda uma rede é armada, técnicas precisam ser movidas, hábitos comuns reúnem os
meliantes. A corrupção não é singular, mas necessariamente coletiva. Estudos
analisam os atos de quem rouba o erário. A intelecção dos agentes corruptos une
as trocas de favores, "amizades", apadrinhamentos, interesses sociais
e políticos (J. Boissevain, Friends of Friends: Networks, Manipulators and
Coalitions, 1974).
Para corromper normas e projetos são inventadas
novas e sutis formas de acesso às informações, às pessoas, às influências. Uma
estrutura triádica, no entanto, sempre opera no setor escuro da vida política:
existem os clientes, postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores (os
brokers), que distribuem cargos e recursos, garantem fidelidade aos pactos.
Combater a corrupção requer controlar os "clientes" e quem os
favorece. O caso Alberto Youssef é claro: ele serviu como broker (corretor) para
corrompidos nos dois polos, o público e o privado. Não basta punir um ou dois
integrantes da rede, os três devem receber sanção negativa. A tarefa requer
forças que vão além de polícia, Justiça, controladorias. Todos os que pagam
impostos deveriam agir como fiscais dos cofres públicos. É mais fácil,
entretanto, abrir o jornal, ligar a TV ou o computador e assumir o rito inútil
da indignação que leva... à hipnose e ao esquecimento.
Com o moderno Estado foi inoculado na massa dos
contribuintes o dogma de que existem funções explicitamente públicas,
desempenhadas por pessoas cujos poderes são limitados pela ordem jurídica.
Nessa forma de pensar, apadrinhamentos, favores recíprocos, apoios financeiros
para eleger parlamentares e governantes permanecem na penumbra, raramente
surgem na cena para "desacreditar a ordem legal". Mas todos sabem e
ninguém confessa: as ligações perigosas entre clientes e brokers definem a
política "realista" que gera as referidas trocas de dinheiro,
clientela, sufrágios eleitorais (Della Porta, D. e Mény, Démocratie et
Corruption en Europe, 1995).
No Antigo Regime o rei distribuía favores aos
nobres e clérigos para manter o trono. Na época já existiam os
"padrinhos", os clientes e os brokers, que abriam a via para os
cargos e dinheiros públicos. As revoluções modernas instauraram o regime
parlamentar. Nele desapareceriam os benefícios do monarca. Pobre ilusão, pois
os parlamentos reforçam "as técnicas do favor e, com elas, o
apadrinhamento e a clientela também se modernizaram.
Nem a politização, nem a
burocratização acabam com elas"(F. Monier, Patronage et Corruption Politiques
dans l'Europe Contemporaine, 2012). Os elos entre as formas privadas (e
públicas) para o enriquecimento de políticos e líderes econômicos foram
instaurados na própria gênese do Estado parlamentar.
As empresas dependiam do quadro normativo e fiscal
do Estado, concessões e contratos governamentais iniciam sua era dourada. E os
políticos passam a precisar dos empresários para seus assuntos eleitorais.
Ambos buscavam informações para suas estratégias específicas. Na Inglaterra uma
"private law" da House of Commons devia ser votada sempre que
iniciativas no campo ferroviário eram empreendidas.
O lobby tem papel
relevante. Desde 1830 os empresários do ramo se introduzem no Parlamento, em
1860 eles já eram 200. Ali uniam o papel de representantes de empresas e do
eleitorado. Surgem os agentes parlamentares e o lobby profissional. Tais
agentes operam com parlamentares, intermedeiam o trato entre firmas, governo,
deputados. Em 1867 aparecem as United Railway Companies e várias associações
visando ao lobby. Elas controlam o Board of Trade, aprovam ou impedem leis
entre 1870 e 1880. Na França ocorre algo similar. Desde 1870 os deputados
pertencentes à centro-direita ocupam 50 cargos administrativos em grande
empresas do país: finanças, ferrovias, mineração, indústria pesada, comércio,
seguros (J. I. Engels, in Patronage et Corruption, citado acima). Só no século
20 começa, na Europa e nos EUA, o controle efetivo dos tratos entre empresas
privadas e governos.
O que ocorre no Brasil, portanto, deve ser visto em
perspectiva temporal: aqui ainda se pratica a simbiose de empresários e
políticos com vista a levar recursos públicos para os cofres das firmas
privadas e para os partidos que assumem nas administrações e nos parlamentos
(municipais, regionais, nacional) a função de lobistas, truque que tem o nome
de "bancada X ou Y" do Congresso.
Financiamento público de campanhas
políticas sem regulamentar o lobby e impedir que líderes operem como brokers
nos três Poderes é mover o sorvedouro orçamentário de uma fonte para colocá-lo
em outra, menos visível, mais tirânica".
*Roberto Romano é professor da Unicamp
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