"Passada uma semana do juízo final, ainda me pergunto cadê a Dilma. Ela
disse que as contas públicas estavam sob controle e elas aparecem com imenso
rombo. Como superar essa traição da aritmética? Uma lei que altere as regras. A
partir de hoje, dois e dois são cinco, revogam-se as disposições em contrário.
Os sonhos de hegemonia do PT invadem a matemática, como Lysenko invadiu
a biologia nos anos 30 na Rússia, decretando que a genética era uma ciência
burguesa. A diferença é que lá matavam os cientistas. Aqui tenho toda a
liberdade para dizer que mentem.
Cadê você, Dilma? Disse que o desmatamento na Amazônia estava sob
controle e desaba sobre nós o aumento de 122% no mês de outubro. Por mais
cética que possa ser, você vai acabar encontrando um elo entre o desmatamento
na Amazônia e a seca no Sudeste.
Cadê você, Dilma? Atacou Marina porque sua colaboradora em educação era
da família de banqueiros; atacou Aécio porque indicou um homem do mercado, dos
mais talentosos, para ministro da Fazenda. E hoje você procura com uma lanterna
alguém do mercado que assuma o ministério.
Podia parar por aqui. Mas sua declaração na Austrália sobre a prisão dos
empreiteiros foi fantástica. O Brasil vai mudar, não é mais como no passado,
quando se fazia vista grossa para a corrupção. Não se lembrou de que seu
governo bombardeou a CPI. Nem que a Petrobrás fez um inquérito vazio sobre
corrupção na compra de plataformas. A SBM holandesa confessou que gastou US$
139 milhões em propina.
E Pasadena, companheira?
O PT está aí há 12 anos. Lula fez vista grossa para a corrupção? Se você
quer definir uma diferença, não se esqueça de que o homem do PT na Petrobras
foi preso. Ele é amigo do tesoureiro do PT. A cunhada do tesoureiro do PT foi
levada a depor porque recebeu grana em seu apartamento em São Paulo.
De que passado você fala, Dilma? Como acha que vai conseguir se
desvencilhar dele? A grana de suas campanhas foi um maná que caiu dos céus?
Um dos traços do PT é sempre criar uma versão vitoriosa para suas
trapalhadas. José Dirceu ergueu o punho cerrado, entrando na prisão, como se
fosse o herói de uma nobre resistência. Se Dilma e Lula, por acaso, um dia
forem presos, certamente, dirão: nunca antes neste país um presidente
determinou que prendessem a si próprio.
Embora fosse um fruto do movimento de arte moderna no Brasil, Macunaíma
é um herói pós-moderno. Ele se move com desenvoltura num universo onde as
versões predominam sobre as evidências. Nesta primeira semana do juízo final,
pressinto a possibilidade de uma volta ao realismo. É muito aflitivo ver o País
nessa situação, enquanto robôs pousam em cometas e EUA e China concordam em
reduzir as emissões de gases de efeito estufa. O realismo precisa chegar rápido
para a equação, pelo menos, de dois problemas urgentes: água e energia. Lobão é
o ministro da energia e foi citado no escândalo. Com perdão da rima, paira
sobre o Lobão a espada do petrolão. Como é que um homem desses pode enfrentar
os desafios modernos da energia, sobretudo a autoprodução por fontes
renováveis?
Grandes obras ainda são necessárias. Mas enquanto houver gente querendo
abarcar o mundo a partir das estatais, empreiteiras pautando os projetos, como
foi o caso da Petrobrás, vamos patinar. O mesmo vale para o saneamento, que
pode ser feito também por pequenas iniciativas e técnicas, adequadas ao lugar.
Os homens das empreiteiras foram presos no dia do juízo final. Este pode
ser um caminho não apenas para mudar a política no Brasil, mas mudar também o
planejamento. A crise hídrica mostra como o mundo girou e a gente ficou no mesmo
lugar. Existe planejamento, mas baseado em regularidades que estão indo água
abaixo com as mudanças climáticas.
O dia do juízo final não foi o último dia da vida. É preciso que isso
avance rápido porque um ano de dificuldades nos espera. Não adianta Dilma dizer
que toda a sua política foi para manter o emprego. Em outubro, tenho 30.283
razões para desmentir sua fala de campanha: postos de trabalho perdidos no
período.
Não será derrubando a aritmética, driblando os fatos que o governo
conseguirá sair do seu labirinto. O desejo de controlar a realidade se estende
ao controle da própria oposição. O ministro da Justiça dá entrevista para dizer
como a oposição se deve comportar diante do maior escândalo da História. Se
depois de saquear a Petrobrás um governo adversário aconselhasse ao mais
ingênuo dos petistas como se comportar, ele riria na cara do interlocutor. Só
não rio mais porque ando preocupado. Essa mistura de preocupação e riso me faz
sentir personagem de uma tragicomédia.
Em 2003, disse que o PT tinha morrido como símbolo de renovação. Me
enganei. O PT morreu muitas vezes mais. Tenho de recorrer ao Livro Tibetano dos
Mortos, que aconselha a seguir o caminho depois da morte, sem apego, em busca
da reencarnação. Em termos políticos, seria render-se à evidência de que
saqueou a Petrobrás, comprou, de novo, a base aliada e mergulhar numa profunda
reflexão autocrítica. No momento, negam tudo, mas isso o Livro Tibetano também
prevê: o apego à vida passada é muito comum. Certas almas não vão embora fácil.
A crise é um excelente psicodrama: o ceticismo político, a engrenagem
que liga governo a empreiteiras, o desprezo pelas evidências, tudo isso vira
material didático.
Dizem que Dilma vive uma tempestade perfeita com a conjunção de tantos
fatores negativos. Navegar num tempo assim, só com o preciso conhecimento que o
velho Zé do Peixe tinha da costa de Aracaju, pedra por pedra, corrente por
corrente.
No mar revolto, sob a tempestade, os raios e trovões não obedecem aos
marqueteiros. Por que obedeceriam?
O ministro da Justiça vê o incômodo de um terceiro turno. Não haverá
terceiro turno, e, sim, terceiro ato. E ato final de uma peça de teatro é,
quase sempre, aquele em que os personagens se revelam. Por que esses olhos tão
grandes? Por que esse nariz tão grande, as mãos tão grandes, vovozinha?”
(Estado de São Paulo em 21/11/2014”.
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