"H., 30, foi submetida à mutilação genital feminina aos 12 anos em Serra Leoa, na África. O corte do clitóris, uma tradição local que marca a transformação de meninas em mulheres, foi feito pela própria mãe.
H. fugiu para o Brasil há um ano. Ela
se mudou para Brasilândia, em São Paulo, e trabalha no centro como
cabeleireira. Decidiu fugir quando a mãe, já idosa, a ameaçou de morte porque
ela se recusou a substituí-la na função de mutilar mulheres.
Era cedo, ainda pela manhã. Sempre é de
manhã, já que o sol forte pode piorar ainda mais a hemorragia que viria com o
corte. Éramos 12 meninas no porão de uma residência em Freetown [capital de
Serra Leoa], onde eu nasci e morava.
Não sabíamos de nada. Ninguém nos
falava por que estávamos ali e muito menos o que ia acontecer. Quando alguma de
nós perguntava, diziam que era uma festa.
Eu era jovem, tinha 12 anos, mas lembro
desse lugar. Havia muitas mulheres vestidas e pintadas de branco nas mãos, no
rosto, tudo. Eram só mulheres. Parecia mesmo uma festa, com dança e tambores
que não paravam de tocar. Depois descobri o porquê.
Minha mãe me mutilou ali, arrancou com
uma lâmina meu clitóris e costurou minha vagina. Assim como mutilou as outras
meninas que me acompanhavam.
Ela era líder da "Bundu Society" [espécie de sociedade secreta em que mulheres mais velhas têm a responsabilidade de preparar meninas para a idade adulta]. Atendia pelo nome de "Chairlady".
De uma coisa eu lembro: de gritar
enquanto meu clitóris era arrancado. E quanto mais eu gritava, mais as mulheres
tocavam os tambores e cantavam. Assim, a minha dor também era secreta.
Para cicatrizar o corte, evitar a
hemorragia e infecções, colocaram uma pasta à base de folhas na minha vagina.
Como presente, me deram para comer uma
papa doce misturada com arroz. Permaneci nesse lugar por duas ou três semanas
para me recuperar, não me lembro direito.
A tradição tem um ritual completo. No
último dia, fomos andando pelas ruas até a margem de um rio que não era tão
profundo. As mulheres mais velhas jogavam objetos nas águas para que nós
pegássemos. Era o final, estávamos voltando para casa.
Neste dia, lembro que escolhi a minha
roupa. Vestido novo, sapatos bonitos, colar, brinco e pulseira. Eu estava muito
bonita e tinha me tornado uma mulher.
Se eu tive raiva? Não, não tive. Éramos
jovens e a tradição, forte demais. Todas as minhas amigas passavam pela mesma
coisa.
Não tinha como fugir. Não me lembro de
nenhuma garota dizendo "não quero fazer isso", mas se ocorresse elas
seriam agarradas à força. Ninguém ia escutar se alguém gritasse pedindo socorro
por causa dos tambores altos e do canto. As mulheres da "Bundu
Society" eram fortes e poderiam segurar alguém com violência. O destino
era sempre o mesmo.
Um dia me apaixonei por um rapaz, que
hoje é meu marido. No início, ele me perguntou se eu tinha feito a mutilação.
Eu disse que sim, mas não acho que isso tenha sido essencial para ele.
Há homens de onde eu venho que só
querem mulheres mutiladas, outros não se importam tanto com a tradição.
Sinto dor durante o sexo. Até hoje. Se
transo com meu marido em um dia, a próxima vez só será daqui a uma ou duas
semanas. Às vezes fujo dele porque simplesmente não quero sexo, mas ele quer.
Por causa da mutilação, minha vagina
foi costurada. Nunca sofri com nenhuma infecção ou doença. Nada. Mas tive
problemas no parto.
Tenho duas filhas. Quando engravidei da
minha primeira, não tive complicações porque ela era pequena. Quando fui dar à
luz à segunda, foi diferente. Ela era grande, os médicos tiveram que abrir os
cortes para ela passar. Depois fui operada.
FUGA
A relação com a minha mãe continuou a
mesma depois da mutilação. Eu era pequena e continuei fazendo o que ela
mandava. Tinha respeito.
Mas tudo mudou no dia que soube do meu
destino como filha mais velha. Com minha mãe já idosa, eu deveria tomar seu
lugar na sociedade secreta. Meu futuro era ser "Chairlady" e cortar
meninas.
Disse não. Olhei para minha mãe, que
estava com o dedo apontado na minha direção: "Se você não fizer isso, eu
te mato".
Deixei minhas duas filhas, de seis e
nove anos, com a mãe do meu marido. Consegui protegê-las da mutilação e hoje
elas estão seguras.
Conversei com meu marido e fugimos para
o Brasil. Era um lugar de que ouvíamos falar desde muito jovens.
Não quero voltar para a África. Amo o
Brasil, principalmente a comida. A única tristeza que sinto é ter deixado
minhas filhas em Serra Leoa. Trazer as duas para morar comigo aqui seria o meu
maior sonho. Mas vou fazer isso de que jeito?
Quando cheguei ao Brasil não consegui
nada, nem português eu sei falar. Acabei arranjando uma vaga de cabeleireira na
Galeria do Rock.
Não tenho raiva, nem penso no que
aconteceu comigo. Tento não lembrar desse passado e sigo em frente. Daqui a
pouco vou ter um menino, estou grávida de seis meses.
Quero ensiná-lo a ser homem de verdade. Na África, mulheres são responsáveis por limpar, lavar, cuidar dos filhos e do marido. O homem tem que ir trabalhar para trazer o sustento pra família. É assim sempre."
(Publicado na FSP, em 08/03/2015)
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