(Publicado em 12/12/2015 em O Globo)
"Enquanto, na
França, dezenas de milhares saíam às ruas para dizer “Eu sou Charlie”,
professores universitários brasileiros saíam de suas tocas para celebrar o
terror. Não começou agora: é uma reedição das sentenças asquerosas pronunciadas
na esteira do 11 de setembro de 2001. São sinais notáveis da contaminação
tóxica de nossa vida intelectual e, especificamente, da célere conversão de
departamentos universitários em latas de lixo do pensamento.
A mensagem dos
franceses foi um tributo à vida e à civilização. “Eu sou Charlie” não significa
que concordo com qualquer uma das sátiras do Charlie Hebdo.
Significa que
concordo com a premissa nuclear das sociedades abertas: a liberdade de
expressão é, sempre, a liberdade daquele com quem não concordo. Isso, porém, nunca
entrará na cabeça de nossos mensageiros da morte.
Seu discurso padrão
começa com uma condenação ritual do ato terrorista: “É claro que não estou
defendendo os ataques”, esclareceu de antemão uma dessas tristes figuras, antes
de entregar-se à defesa, na forma previsível da condenação das vítimas
“justiçadas”.
“Não se deve fazer
humor com o outro”, sentenciou pateticamente Arlene Clemesha, que ostenta o
título de professora de História Árabe na USP, para concluir com uma adesão
irrestrita à lógica do terror jihadista. É preciso, disse, “tentar entender” o
significado do ataque: “um atentado contra um jornal que publicou charges
retratando o profeta Maomé, coisa que é considerada muito ofensiva para
qualquer muçulmano”.
Clemesha é só uma,
numa pequena multidão acadêmica consagrada à delinquência intelectual. No mesmo
dia trágico, Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais na Uerj,
esqueceu-se do cínico aceno prévio para expor logo sua aguda visão sobre o
“controle social da mídia” e, de passagem, candidatar-se a porta-voz oficial do
Estado Islâmico: “Quem faz uma provocação dessas”, explicou, referindo-se aos
cartunistas assassinados, “não poderia esperar coisa muito diferente”.
O curioso, nas
Clemeshas e nos Gonçalves, é que eles rezam pela mesma cartilha que Marine Le
Pen, apenas com sinal invertido. O nome dessa cartilha é “choque de
civilizações”.
Na onda de
islamofobia que varre a França, surfam dois lançamentos recentes. O livro “Le
suicide français”, do jornalista ultraconservador Éric Zemmour, alerta contra a
destruição da cultura francesa por vagas sucessivas de imigração muçulmana.
O romance
“Soumission”, de Michel Houellebecq, imagina a França governada por um partido
islâmico no ano agourento de 2022. Segundo a gramática do “choque de
civilizações”, o Islã não cabe na França: um muçulmano só pode ser um francês
se, antes, renunciar à sua fé.
Os nossos Gonçalves
e Clemeshas estão de acordo com isso –mas preferem que, para acolher os
muçulmanos, a França renuncie a suas leis e a seus valores, entre os quais a
laicidade do Estado. E, no entanto, apesar de Zemmour, Houellebecq, Clemesha,
Gonçalves e Le Pen, milhares de muçulmanos franceses exibiram nas ruas os
cartazes com a inscrição “Eu sou Charlie”…
Karl Marx escreveu
cartas elogiosas a Abraham Lincoln. Leon Trostsky contou com a colaboração
inestimável do filósofo liberal John Dewey para demolir as falsificações dos
Processos de Moscou. Entre um evento e outro, o socialista August Bebel
qualificou o antissemitismo como “o socialismo dos idiotas”.
Em outros lugares e
outros tempos, o pensamento de esquerda confundiu-se com o cosmopolitismo e
produziu as mais comoventes defesas das liberdades civis. No Brasil de hoje,
com honoráveis exceções, reduziu-se a um pátio fétido habitado por “black
blocs” iletrados, mas fanaticamente antiamericanos e antissemitas.
“Não se deve fazer
humor com o outro”, está escrito na lápide definitiva que cobre o túmulo do
humor. Raqqa, a sede do califado, é aqui. “Eu sou Charlie”.
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