Como se fora um intelectual petista, Arnaldo Jabor tece delicioso texto distópico. O delírio da narrativa se encerra com a imagem da tumba de Lula, em Brasília, similar à de Lenine, em Moscou.
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“Eu sou de esquerda.
E tenho muito orgulho disso. Eu sou bom, minha consciência é limpa. Eu sou tão
superior a esta população de idiotas, alienados, que inflo o peito com alegria
ao ver-me pairando acima da massa de babacas tanto da pequena burguesia quanto
da elite branca, que deve ser arrasada para que impere a verdadeira elite
vermelha, que sou eu, somos nós. Como será maravilhoso o fim da propriedade
privada, mesmo que para isso seja necessário enquadrar, prender, até matar
reacionários como fizeram nossos chefes tão criticados pelos social-democratas,
os maiores inimigos da Revolução. Lembro sempre as palavras de Trotski: ‘Quem
foi que disse que a vida humana é sagrada?’.
Claro que os
dirigentes terão direito a apartamentos duplex ou triplex, automóveis oficiais,
porque afinal ter o controle dos meios de produção, limitação da mídia, dá
muito trabalho — e não são privilégios, não; são direitos nossos de comandantes
na construção do futuro. Desde que entrei no Partido, sou parte de um olimpo de
pessoas extraordinárias. Nos olhamos com o doce sentimento de pairar acima das
multidões. Ai, que bom... participar de comitês revolucionários com discussões
ideológicas que se estendem até o cu da madrugada, sair ao amanhecer e ver a
multidão de operários indo para o trabalho, enquanto nós decidíamos seu futuro.
Mesmo as brigas internas me emocionavam, aquela luta pela fome de subir no
Partido, a vigilância do outro, o silêncio sobre os erros, as falsas
autocríticas, até mesmo a alegria de injustiças feitas em nome do Bem.
Eu sou um elo da
cadeia que vai desde a revolução soviética, em 1917, até hoje, na grande
reconstrução da Venezuela feita pelos nossos irmãos bolivarianos. Ainda bem que
o Putin está refazendo tudo que a URSS perdeu por obra dos agentes do imperialismo
ianque, pois todos sabemos que o canalha do Gorbatchov foi treinado na CIA.
Depois que eu virei um revolucionário do Partido, faço sucesso com as
companheiras e mesmo as reacionárias, o que me dá, ao comê-las, uma mistura de
prazer com vingança. Mas, o grande prazer é sentir-se na ‘linha justa’, é saber
que nada é culpa nossa, mas do imperialismo americano, este dragão do mal que
até instilou câncer no corpo do comandante Chávez, como ele próprio denunciou,
na forma de um passarinho no ouvido do comandante Maduro.
Aí, ficam os
neoliberais nos acusando de roubo das companhias estatais, como a Petrobras.
Mas, nós temos o direito de desapropriar instituições para financiar nosso
futuro. A Petrobras sempre foi nossa, sempre foi um tesouro dos amantes do povo,
sempre esteve ali como um motor para mover a revolução nacionalista. Armar
grandes fontes de propinas que caem em nosso partido é um gesto revolucionário.
Tudo bem que o valor da Petrobras tenha caído de R$ 700 bilhões para R$ 150
bilhões por causa dos escândalos, dos roubos, mas nos consola saber que esse
dinheiro desviado foi para o Bem do povo que professamos, pois não há Bem sem
verba.
Aliás, nem só a
Petrobras, mas qualquer companhia pública do país nos favoreceu: aeroportos,
portos, fundos de pensão (oh... maravilha!) podem ser desapropriados (ou
predados, como dizem os neoliberais), pois estamos a criar um novo país. Ainda
não sabemos como será, mas certamente queremos que o Estado seja dono de tudo,
inclusive do desejo das pessoas, livres da sociedade alienada onde se acoitam
os inimigos do povo.
Esse papo de
democracia é muito sem ‘design’, muito falatório, muitas opiniões, muita
liberdade e uma insuportável multiplicidade de desejos. Bom é o ‘um’, em vez do
burburinho de opiniões diversas. Por isso eu amo a Coreia do Norte. Tudo bem
que eles sejam um pouco radicais, mas há que reconhecer que vibro com o
universo controlado que o Kim armou para organizar tudo. Os passos de ganso dos
desfiles patrióticos, toda a população chorando e fingindo teatralmente quando
morreu o pai do Kim. Como é belo tudo isso; parece haver só um homem, todos
iguais ao próprio presidente Kim, com seu cabelinho cortado que todos devem
copiar...
Ah... que saudades
dos velhos tempos de 1963... Agora estamos voltando a essa época. Por isso
desenterramos o Jango para revigorar a boa ‘teoria da conspiração’, afirmando
que ele foi envenenado pelo imperialismo. Minha fé no Partido me deixa muito
feliz, porque o comunista não morre nunca; somos seres sociais como as
formigas, e por isso, a morte individual pequeno-burguesa não me atingirá —
sinto-me eterno.
Agora estamos sob
ataque das forças da elite conservadora. Muitos supostos crimes foram delatados
e nos chamam de organização criminosa. Nada disso. Não temos medo das
consequências jurídicas, porque sei que essas revelações são tantas que cairão
na vala comum do Poder Judiciário, que não tem como julgar tanta coisa. Com
chicanas e recursos e ministros petistas vai se criar um congestionamento de
processos que vão virar uma massa informe que tem como aliada o esquecimento.
E mesmo que isso tudo
signifique o desprestígio total do Brasil no mundo, me consola a certeza de que
mudamos o Brasil, mesmo transformando-o num lixo porque, afinal, não
acreditamos no conceito de ‘país’— somos um sistema.
E tem muita gente que
me pergunta como vejo o futuro do país. Bem, eu imagino Brasília tomada de uma
vez por todas. As praças e prédios do poder invadidos e aparelhados, com
multidões na Praça dos Três Poderes aclamando os líderes do nosso futuro,
protegidos pelas milícias do MST e pela guarda pretoriana dos intelectuais
orgânicos das universidades e pelos pelotões do Bolsa Família.
Já vejo com emoção a
brancura dos monumentos e dos palácios cobertos de milhares de bandeiras
vermelhas ao vento e o grande pendão da esperança vermelha tremulando no mastro
central”.
E mais: onde era o
monumento do JK estará o grande caixão de cristal onde jazerá o Lula,
embalsamado para toda a eternidade!”
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