(Publicado no Estadão de 1/1/2015)
"Vivemos sob o império da globalização, que não só afeta os mercados, mas
cria objetos que revolucionam os comportamentos do dia a dia. Estamos quase
sempre sintonizados com o mundo inteiro.
O celular, cada vez mais sofisticado, coloca o usuário nas redes
sociais, num sistema global de informação, e traz para o cotidiano as
informações acumuladas nas bibliotecas, nos museus, nas galerias. Mas se temos
na mão imagens do mundo, cada vez mais nos vemos empurrados cada um para si
mesmo. Comunicamo-nos com todos e com tudo, sem os riscos do confronto direto
com as indeterminações do outro. Chegamos até ele graças às imagens que se
configuram pela troca das mensagens. Comunicamo-nos fora dos sutis matizes de
comportamento que circundam o falar com auréolas de múltiplos sentidos. A troca
de informações mecaniza-se ou explode no insulto sem recuo.
Quantas vezes vemos uma família reunida, cada um grudado no seu celular?
Jovens reúnem-se, mas, em vez de se soltarem na conversa, passam a trocar
mensagens entre si e com amigos distantes.
Esse novo objeto tecnológico altera profundamente os comportamentos
cotidianos, tende a abolir qualquer etiqueta, a pequena ética que nos regula.
Outro dia, um amigo me fazia observar que nós, brasileiros, recebemos essa
avalanche das novas tecnologias antes de ficarmos ricos, de sabermos usar essa
riqueza. E assim nos fazem sentir poderosos sem que tenhamos de fato o poder de
aplicá-las corretamente atuando na sociedade contemporânea. Basta comparar o
uso do celular entre brasileiros, americanos e europeus para que se perceba
como cada povo governa o mesmo objeto de modo diferente.
O uso do celular mostra-nos em miniatura como a arte de nos governar tanto
depende de novas tecnologias globais como do nível de educação que nos leva a
ela. Até que ponto nós, cidadãos da periferia do capitalismo, nos governamos
adequadamente quando nossas ações passam a ser mediadas por objetos
tecnológicos altamente sofisticados? Não é só no cinema que vemos pessoas sendo
servidas por robôs. Andar por uma cidade moderna como São Paulo já nos situa
numa rede tecnologicamente avançada, assim como nos mostra a precariedade de
seu mau funcionamento. Essa distância se torna crucial quando se trata do
governo da coisa pública.
Centro de nossa formação em ciência e tecnologia, a universidade não é o
exemplo mais flagrante? Na USP o abismo entre boas intenções e exercício
competente das funções burocráticas cresce dia a dia. Ainda se propõe a ligar
diretamente ensino, pesquisa e extensão. Mas nem sempre cada docente é capaz de
exercer com proficiência todas essas funções em mudança contínua. Além da
diferença de talentos, cada um se prepara para dominar a seu modo as novas
técnicas. Uma coisa é lecionar filosofia para alguns alunos, como era no meu
tempo, outra é enfrentar uma classe de 150 estudantes que têm acesso a um
sofisticado mercado de livros e aos meandros da internet. Em vez daquelas vagas
de ideias que de tempos em tempos varriam nossas inteligências, hoje é como se
a mídia nos conduzisse a um zoológico onde convivem animais filosóficos das
espécies mais diversas.
Por certo, existem docentes de maior envergadura, que
fugiram das jaulas do senso comum, retomam as velhas práticas de reler os
textos com refinamento, em grupos pequenos, mas agora ligados a outros grupos
noutros lugares do planeta.
Note-se que nem o filósofo midiático nem o professor de Filosofia foram
preparados para exercer outras funções na universidade. A indissolubilidade
institucional do ensino, da pesquisa e da extensão implica que cada funcionário
exerça todas com a mesma proficiência. É a própria instituição que os deve
balancear, respeitando as diferenças de talento e de comprometimento. Ora, se o
exercício do funcionário está cada vez mais ligado a um aprendizado específico,
o que dizer da gestão da coisa pública?
Muitos confundem o desempenho das funções públicas com o direito dos
cidadãos. Igualdade dos direitos, porém, não cria igualdade na capacidade
profissional. Em muitas universidades federais todos os docentes, depois de
alguns anos, vão tornar-se professores titulares, como se pudessem ter o mesmo
desempenho. Os funcionários hierarquizam-se segundo critérios burocráticos, sem
levar em conta como cada um deve preparar-se para exercer funções cada vez mais
diferenciadas. E os alunos, justamente aqueles no início do processo de
formação, acreditam que podem ser eleitos reitores ou escolhidos pró-reitores.
E como lhes parece que todos esses problemas de gestão profissionalizada já
estão resolvidos, a maioria dos universitários continua reclamando por mais
verbas para a educação, sem pôr em pauta a prioridade de repensar novas formas
de boa governança. Note-se que não se trata de reforçar o mérito, de instalar
uma meritocracia, mas de adequar o exercício do poder às novas técnicas das
quais ele depende.
Como o preenchimento dos cargos às vezes tem sido mais ideológico que
político, não assistimos nas universidades à corrupção deslavada que irrompe
noutras empresas estatais. Nos últimos tempos os governos ditos de esquerda
nomearam políticos para cargos burocráticos. Obviamente, isso diminuiu a
eficiência dessas burocracias, mas também instaura nova forma de corrupção. Não
tanto aquela tradicional, do político corrupto que se apropria do dinheiro
público, mas a institucional a serviço do próprio partido.
Nada explica afirmar que a corrupção política existe desde que Adão foi
expulso do paraíso. Importa entender a forma como se exerce num país em
desenvolvimento que dispõe de uma tecnologia de gestão que nem sempre ele sabe
utilizar".
*José Arthur Giannotti é professor de
Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e membro do CEBRAP
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